quarta-feira, 23 de julho de 2025

60 +

Tenho pensado muito sobre a minha nova condição de idoso. Já faz dois anos que entrei nela mas, como sou idoso, penso mais devagar. Aliás, estou fazendo tudo cada vez mais devagar. Tenho dores que antes não tinha. Acho longe trajetos que antes considerava perto. Essa semana fui pela primeira vez consultar um geriatra. Ele me pediu exames que eu nem sabia que existiam, nunca tinha ouvido falar em densiometria óssea nem tampouco em ecodopplercardiograma transtorácico... Sempre me lembro da minha mãe. Uma vez perguntei a ela como era ter setenta anos e ela me respondeu: Não sei, eu não me sinto com setenta. Pra mim eu continuo com uns trinta! Eu também continuo pensando que tenho trinta. Mas não me engano: quando tento realizar os impulsos de trinta que ainda tenho sinto as limitações dos sessenta e dois que já chegaram... Sempre ouvi dizer que o Brasil era o país do futuro. A sensação que tenho agora é de que o futuro chegou e o Brasil já não deu certo. E no tempo que ainda tenho para viver tenho certeza de que não dará. Não acredito que alguém ou algum partido dê jeito nisso. O ser humano tem se aperfeiçoado cada vez mais em piorar... Não tive filhos, portanto não terei netos. Minhas atuais preocupações com o "futuro" se resumem a ter saúde, disposição e meios financeiros para realizar alguns sonhos que ainda não realizei. Trabalho cada vez menos. O etarismo é uma realidade que agora sinto na pele. (Pele que por sinal está cada vez mais enrugada rsrs). Já não recebo convites para trabalhar. Se não me mexo, não vou à luta, fico em casa esperando e nada acontece. A academia me salva. Os exercícios me fazem sentir vivo e disposto. O bom humor me salva. A arte, o teatro, a música e a cultura de um modo geral me salvam. Especialmente a literatura tem me salvado cada vez mais. Tenho relido as primeiras obras que li na infância: Monteiro Lobato e seus incríveis A Chave do Tamanho e Viagem ao Céu. É impressionante como já estava tudo lá. Todos os conceitos importantes da vida, as relações sociais e as de afeto, a filosofia, a política, a ciência e as maravilhas desse mundão de meu Deus... Felizmente ainda tenho curiosidade pela vida e pelas pessoas. Me recuso a me isolar. Dia desses me surpreendi: Fui no show do Alok no Pacaembu! E gostei, ou melhor, curti muito. E ver artistas quase centenários como Othon Bastos e Nathalia Timberg no palco me encheu de esperanças... Tenho a meu favor uma tranquilidade natural que sempre fez parte de mim e agora, na calma da idade avançada, me poupa de estresses e ansiedades desnecessárias. Desfruto da minha própria companhia como sempre fiz. Agradeço a Deus todas as manhãs por acordar vivo e saudável. Estou sempre com o pé que é um leque para viajar e com o texto na ponta da língua para subir ao palco. Rezo todas as noites por mim e pelos que amo. Sofro pelos que nos deixam, sobretudo pelos que nos deixam precocemente. Sigo me encantando com pores de sol, noites estreladas e enluaradas e amanheceres. Amo cada vez mais os animais. E os bons vinhos, né? Que no seco também não dá... Como disse no início, tenho pensado muito sobre a minha nova condição. Já faz dois anos que entrei nela mas, como sou idoso, penso mais devagar... Na foto, eu 60+ pela lente do fotógrafo & amigo Guto de Castro.

sábado, 12 de julho de 2025

MENINO BONITO

Acordo numa manhã fria de sábado em pleno inverno, que este ano está excepcionalmente frio em São Paulo. Antes mesmo de fazer o desjejum me deparo com um vídeo no Instagram: Chico Chico, o filho de Cássia Eller, cantando Menino Bonito, de Rita Lee. Há muito tempo alguém ou alguma coisa não me emocionava tanto na música brasileira. Me arrepiou da cabeça aos pés. Me fez chorar. Um choro que era ao mesmo tempo de saudade de Cássia e de felicidade pelo belo presente que ela nos deixou. Chico desconstrói estereótipos tal qual a mãe. Se apresenta com as pernas de fora, cantando no feminino como Rita escreveu a canção, e com a força, a potência e a irreverência que herdou da mamis. Herdou também o vozeirão de arrepiar. Além de excelente cantora, Cássia sempre subverteu padrões de comportamento. E quando parecia que já estava totalmente assimilada ela apareceu grávida dando um verdadeiro nó na cabeça da imprensa e do público. Que bom que ela fez isso! Que bom que deu à luz essa joia que é Chico Chico. Ele atualiza conceitos de masculino e feminino, de beleza e de modernidade. Desejo sinceramente que ele tenha muito sucesso. Que consiga tocar muitas pessoas como me tocou. Emocionar muitas pessoas como me emocionou. Não é possível que em meio a tanta brutalidade e mediocridade não tenha restado um pouquinho, um cantinho, um laivo de sensibilidade no coração das pessoas. Acho maravilhoso que além do legado genético de Cássia, seja através das palavras de Rita Lee, do sentimento que a levou a compor esses versos, que ele chegue até nós nesse momento. Não deixe de ouvir, está disponível em todas as plataformas digitais. E, se possível, assista também ao vídeo, que está no YouTube. Na foto, Francisco Eller fazendo jus ao título do post.

terça-feira, 8 de julho de 2025

VAN NADA VÃ

Nesse domingo que passou tive o prazer de assistir ao belíssimo espetáculo A Mulher da Van, protagonizado por ninguém menos do que Nathalia Timberg, brilhando muito em cena do alto de seus noventa e seis anos de idade. Ela prova com sua performance que o teatro é perene, que a arte, a cultura e o talento são perenes, ao contrário de toda essa baboseira efêmera, consumista e sem sentido que rola nas redes sociais. Como se assistir a essa incrível demonstração da longevidade do talento não fosse o bastante, ainda tive o prazer de ver brilhando ao lado dela os queridos e não menos talentosos amigos Nilton Bicudo, Noemi Marinho e Cléo de Páris. Além dos também excelentes Caco Ciocler, Lilian Blanc, Duda Mamberti e Roberto Arduim. Elencaço, não? O texto do inglês Alan Bennett (traduzido por Clara Carvalho) surge limpo e brilhante na bela encenação do diretor Ricardo Grasson, que confere tons poéticos à história real da mulher que mora em uma van estacionada em frente à casa do dramaturgo. A solidão, o envelhecimento e as dificuldades de convivência dos personagens vêm à tona com boas doses de um humor ora delicado, ora cruel, mas sempre elegante e prazeroso de se assistir. Nada melhor para encerrar uma noite de domingo no inverno de São Paulo. Saí do teatro pensando que ainda há muito a ser vivido e visto, mesmo para quem já tem idade avançada. Como eu, por exemplo, que já conto sessenta e dois anos de vida. Ou para quem tem ainda mais. A vida é o aqui e o agora. E a gente nunca sabe até quando eles irão durar. Resta saber aproveitar... Se arruma e vai ao teatro que tem espaço na van! Viva o teatro! Viva Nathalia Timberg! Nas fotos, Nathalia como Mary Shepherd (a mulher da van) e como ela própria (belíssima) aos 96 anos.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

VICIOUS

O título do post refere-se a uma sitcom britânica maravilhosa que estou maratonando, vejam só, no YouTube. Maldosas, malvadas, perversas, em bom português. O próprio título já seria mal visto por aqui rsrs… Mas o melhor do humor inglês é justamente isso: Ser cruel e passar longe do politicamente correto. E os atores, ah! Que deleite. Ian McKellen e Derek Jacobi, dois monstros sagrados do teatro e do cinema, vivem Freddie e Stuart, o casal gay idoso que está junto há quase cinquenta anos vivendo uma relação no mínimo conturbada. E a graça está justamente aí: Eles se dizem coisas horríveis, acabam um com o outro o tempo todo, mas com a elegância e o refinamento de quem recita um poema. Como só os ingleses sabem fazer… Tem também Ash, o vizinho jovem e hétero (combinação que faz com que o casal de protagonistas se jogue sobre ele como vampiras sedentas de sangue). E as amigas Violet e Penelope - igualmente idosas - a quem eles lançam os maiores impropérios… Tem a mãe de Stuart - ainda mais velha - que telefona todos os dias e não sabe da orientação sexual do filho: Para ela, Freddie é o colega de apartamento dele. Nem o cachorro escapa: Tem vinte anos e vive dentro de uma cesta coberto por um pano... Aqui no nosso país a série seria tachada de etarista e homofóbica. Ou, no mínimo, diriam que reforça estereótipos. Sabemos que envelhecer não é fácil para ninguém. Para as bichas, eternamente preocupadas com a aparência e discriminadas dentro da própria comunidade LGBT - que as chama de tias, mariconas ou cacuras - menos ainda. A parada do orgulho nos trouxe a questão esse ano. Mas em vez de fazer drama, que tal rir dessa situação? É o que Vicious se propõe e realiza com excelência. Eu rio alto com meus fones de ouvido assistindo à série na academia enquanto faço cardio. Ah! E antes que me ataquem: Tenho lugar de fala (como gay e como idoso) e bom humor, graças a Deus! Rsrsrs… Vicious: Diversão da melhor qualidade, de graça, no YouTube… Na foto, os fabulosos Ian McKellen e Derek Jacobi em cena de Vicious.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

AU REVOIR, RIO!

Deixo o Rio de Janeiro feliz por ter revisto a cidade (que não visitava desde janeiro de 2017), ter reencontrado amigos, assistido a espetáculos, descoberto lugares que não conhecia e também por ter tido a oportunidade de visitar a exposição de Cazuza. Foram poucos dias, cinco no total, mas de tão intensos pareceu muito mais. Deu muita saudade do tempo em que eu vivia na ponte aérea para as apresentações da Terça Insana por aqui… Gostei bastante de assistir ao espetáculo/depoimento de Ítala Nandi, Paixão Viva, espécie de palestra semi-encenada na qual ela conta toda a sua trajetória pelo cinema, teatro e televisão. Um formato interessante de ser explorado, ainda mais quando a pessoa em questão tem uma trajetória tão rica em realizações e relacionamentos como a dela. E ela o faz com um pé nas costas, como se estivesse em casa recebendo a plateia… Encerrei a programação teatral no domingo com o espetáculo Os Mambembes, colorida e animada montagem inspirada no clássico O Mambembe, de Artur de Azevedo. A peça celebra o amor pelo teatro e as dificuldades que os artistas encontram pelo caminho enquanto perseguem seu sonho. Estreou em turnê pelo interior do Brasil onde era apresentada na rua em cima de um caminhão. Talvez por isso os atores estejam gritando tanto o tempo todo em cena. Uma direção mais atenta os faria adaptar o registro da interpretação para o palco do teatro. Mas o espetáculo é lindo e os atores, estelares, todos ótimos… Não deu tempo de fazer tudo o que eu queria, mas consegui ir até o centro da cidade para um lanche na belíssima Confeitaria Colombo, que adoro sempre revisitar. Volto para São Paulo repleto de boas imagens, memórias e afetos. Esperando em breve poder retornar… Nas fotos, o belíssimo salão da Confeitaria Colombo, Ítala Nandi agradece os aplausos, elenco de Os Mambembes idem e detalhe do Aeroporto Santos Dumond onde escrevo enquanto espero meu voo de volta para São Paulo.

domingo, 15 de junho de 2025

LE BLÉ NOIR

Copacabana guarda muitas surpresas escondidas nas suas pequenas ruazinhas. Uma delas é o simpático Le Blé Noir, que descobri totalmente ao acaso enquanto fazia um tour de reconhecimento das redondezas. Uma creperia francesa que serve aquele crepe bretão, feito com trigo sarraceno escuro (o blé noir do título) e a cidra da Bretanha, que é deliciosa e não tem nada a ver com aquela brasileira bagaceira que as pessoas jogam no mar como oferenda para Iemanjá e faz a coitada ter ressaca e dor de cabeça rsrs… O ambiente é super agradável, com luz baixa e música idem. Só não me senti na Bretanha porque nunca estive lá. Mas cheguei perto: Lembrei de um restaurante bretão que fui com meu amigo João Faria em Paris, ao lado do Beaubourg, na praça Stravinsky, aquela que tem a fonte com esculturas de Niki de Saint Phalle. Foi lá que conheci o crepe de blé noir e a cidra bretã. Matei a saudade e descobri um novo cantinho para chamar de meu aqui no Rio. De sobremesa pedi a cidra, que veio servida em uma inesperada xícara. Adorei. Essas descobertas que faço ao acaso enquanto estou flanando pelas ruas das cidades que visito são as que mais me agradam; muito mais do que aquelas que alguém nos recomenda ou que estão bombando na internet (como as do tiktok, por exemplo). Por essas e outras coisas legais é que adoro viajar. E voltar aos lugares que já conheço. Vou formando assim o meu portfólio local... o Blé Noir Fica na rua Xavier da Silveira, 19-A em Copacabana e abre às 19:30. Recomendo! Nas fotos, a fachada do restaurante, o vinho que acompanhou meu prato, detalhe do salão e a xícara de cidra.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

EXAGERADO

Várias surpresas e alegrias nessa minha volta ao Rio. Exemplo delas é a exposição Cazuza Exagerado, em cartaz no rooftop do Shopping Leblon. De caráter imersivo, ela te faz entrar em uma espécie de túnel do tempo que percorre toda a trajetória do ídolo pop. Da infância até a doença que o levou precocemente. Passando pelo teatro, as primeiras canções, a banda Barão Vermelho e a consagração da carreira solo. A exposição é linda, super bem montada, rica em detalhes, objetos pessoais e lembranças que a mãe Lucinha Araújo guardou do único filho com muito amor e cuidado. A medida que se anda pelo espaço da mostra, vai-se entrando em diversos ambientes relacionados à trajetória de Cazuza. Como o Circo Voador, o Cassino do Chacrinha e a Pizzaria Guanabara, por exemplo. Mais do que as canções, a poesia sempre foi a marca de Cazuza, o meio através do qual ele melhor expressou seu romantismo exacerbado. Ou exagerado, nas palavras do próprio. Felizmente a poesia tem o merecido destaque na exposição. Ela transborda a cada ambiente. Em manuscritos, em páginas datilografadas; nas máquinas de escrever que ele usava, nas máquinas fotográficas, nos bilhetes que escrevia para os pais, amigos e namorados. Aliás, foi no dia dos namorados que visitei a exposição. Um lindo presente para mim, que passei o dia longe do meu. (Sempre tive Cazuza como uma espécie de namorado imaginário). Fiquei especialmente emocionado diante da máquina de escrever Remington, exatamente igual à que uso em cena no meu espetáculo solo Caio em Revista. E, claro, a garrafa de Jack Daniel’s que uso também. A emoção me pegou na foto dele com Caio feita por Vânia Toledo. Assim como em uma outra na qual ele aparece ao lado de minha saudosa amiga Lidoka. Quando cheguei no ambiente que reproduz o camarim do último show no Canecão eu já estava jogado a seus pés com mil rosas roubadas. E as lágrimas rolaram soltas na sala que refaz o Canecão em si, com uma projeção de Cazuza sobre o palco cantando O Tempo Não Para… Adorei uma sala cujas paredes, teto e chão são totalmente cobertos por fotos do cantor que, animadas por inteligência artificial, o mostram cantando trechos de seus grandes sucessos. Pra que mentir, fingir que perdoou? A emoção acabou, que coincidência é o amor, a nossa música nunca mais tocou… Que engraçado, parece que foi ontem. Me vi jovem e romântico outra vez. Que bom que o tempo não para e nos traz Cazuza de volta nesta belíssima exposição. É como se ele me perguntasse: Mais uma dose? E eu respondesse: é claro que eu to a fim. A noite nunca tem fim, babe. Por que a gente é assim? Nas fotos, as várias fases de Cazuza, o Circo Voador, Remington & Jack Daniel's, Caju e o Velho Guerreiro e eu no camarim do Canecão.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

A BALEIA

De volta ao Rio de Janeiro - depois de oito anos - para assistir à estreia para convidados do espetáculo A Baleia, do americano Samuel D. Hunter, mais uma belíssima direção do mestre Luis Artur Nunes. José de Abreu lidera com galhardia e muito talento o elenco afiadíssimo que é composto por Luisa Thiré, Gabriela Freire, Eduardo Speroni e Alice Borges. Como sempre acontece nas direções de Luis Artur, a grande estrela do espetáculo é o texto. Que, no caso, é brilhante. Samuel D. Hunter mergulha na interioridade dos personagens trazendo à tona todas as suas fraquezas, tristezas, falhas, arrependimentos e decepções. Não sem delicadeza, algum humor e belas imagens. Assim como citações de Herman Melville. Apesar de denso, o texto tem cenas curtas, o que agiliza a história e, quando a gente vê, as duas horas do espetáculo já se passaram. Um grande deleite para o espectador mais atento, que gosta realmente de teatro. Teatro de verdade, com T maiúsculo. Sem grandes pirotecnias cênicas, Luis Artur constrói o seu espetáculo lançando mão basicamente da matéria prima essencial que são os atores. Coisa raríssima de se ver hoje em dia, diga-se de passagem. Um diretor que dirige atores e faz o texto surgir inteiro e bem trabalhado sobre o palco. Cada frase é dita e compreendida em sua totalidade. Já tive a graça de ser dirigido por ele duas vezes - em A Fonte, de Érico Veríssimo, e mais recentemente no meu solo Caio em Revista - e de ser seu assistente de direção em vários outros espetáculos. Além de ter sido seu aluno na faculdade de teatro. Posso dizer com conhecimento de causa que ele se supera a cada novo trabalho. Costumo dizer que trabalhar com Luis Artur Nunes é uma espécie de pós-graduação, como um mestrado ou doutorado. A gente aprende muito enquanto divide com ele a sala de ensaio e os palcos. Sou muitíssimo grato por viver no mesmo tempo que esse grande homem de teatro. E aproveito para agradecer aqui por mais esse lindo presente que é A Baleia. A peça fica em cartaz até 20 de julho aqui no Rio, no teatro Adolpho Bloch, e depois A Baleia irá singrar outros mares Brasil afora. Eu se fosse você não perdia! Nas fotos, o elenco agradece os merecidos aplausos e eu, bem pimpão, entre o diretor e o protagonista Zé de Abreu.

sábado, 7 de junho de 2025

HUMOR PROIBIDO

Quando eu estava na Terça Insana as pessoas viviam me perguntando qual era o limite do humor. Até hoje, toda vez que dou uma entrevista, me fazem essa pergunta e eu invariavelmente respondo: A elegância. Humor tem que ser engraçado (obviamente), inteligente (é o mínimo que se espera dele) e, claro, elegante. É claro que estou me referindo a um humor de bom gosto, refinado. Como era, por exemplo, o de Caio Fernando Abreu e o de Antonio Bivar (sim, eles também faziam humor). E como é, modestamente, o meu. Pelo menos é o tipo de humor que gosto de fazer e de consumir. Mas sei que a maioria dos humoristas e comediantes passam longe dessa minha idealizada elegância. Até porque, vamos combinar, por aqui elegância não vende. Não dá dinheiro. Ou, para ser ainda mais popular, não paga boleto. De uns tempos para cá todo mundo reclama que está tudo muito chato, que não se pode falar mais nada, que tem muito mimimi. A verdade é que nunca pode. Mas, como não havia limite - olha ele aí- todo mundo falava o que quisesse e quem se sentisse ofendido que desligasse a tevê ou simplesmente não fosse ao teatro. Só que o mundo evoluiu (pouco pro meu gosto) e as pessoas passaram a ocupar seus espaços na sociedade sendo quem são. E não querem mais, obviamente, ser alvo de chacota. Todo o humor que cresci assistindo era preconceituoso e discriminatório. Doía demais ver Jorge Dória dizer, referindo-se ao filho gay, “onde foi que eu errei” e todos a minha volta acharem aquilo engraçado. Quando a Terça Insana surgiu representou uma espécie de respiro. O humor que praticávamos dava voz aos discriminados, ao invés de deprecia-los. Vinha como uma renovação daquele velho humor que a televisão repetia há décadas: Da mulher gostosa e burra e da bicha estereotipada, por exemplo. Acho muito feio o que a maioria dos comediantes de stand up brasileiros faz, mas me limito a não consumi-los. Seria muita pretensão da minha parte querer que se calassem (Também acho feio o que a maioria dos fanqueiros e fanqueiras cantam). O humor sempre pôs o dedo nas feridas. Os bobos da corte eram pagos pelos reis para fazerem piadas justamente sobre eles, os reis. Acho um exagero, por exemplo, um humorista ser condenado à prisão por ter feito piadas preconceituosas no seu show. É claro que racismo, homofobia, misoginia e anti-semitismo são crimes. Que o processem, que lhe apliquem multas por danos morais, que tirem seu show da internet. Mas condenar à prisão acho desmedido. Lembra muito aqueles episódios ocorridos durante a ditadura militar, em que soldados invadiam teatros, batiam nos atores e os levavam presos apenas por discordarem do regime. Como aconteceu com o elenco de Roda Viva, que tinha no elenco artistas do calibre de Marília Pera e Zezé Motta, para citar apenas duas. Me pergunto o que seria de Dercy Gonçalves hoje em dia. Ou de Chico Anisio que, no auge do governo Figueiredo (o do prendo e arrebento) se dirigia diretamente a ele dizendo: Alô, João Batista? Salomé de Passo Fundo. E em seguida mandava ver nas críticas… Não quero de forma alguma comparar esses grandes artistas do passado com essa “galera do stand up” de hoje. Não há termos de comparação. O que me entristece é que, na minha humilde opinião, o humor perdeu a graça. Perdeu o requinte e a inteligência. Sutileza, então, nem se fala. Mas aí já seria querer demais. Dizem que rir é o melhor remédio e eu concordo. Acredito que realmente é. Mas que tal rirmos de nós mesmos ao invés de depreciar o próximo? Fica a dica... Na foto, a impagável Dercy torcendo a cara para o mau humor.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

VUELVO AL SUR

De volta ao meu estado natal, o Rio Grande do Sul, para rever familiares e amigos e comemorar o aniversário de minha irmã Raquél… Já faz seis meses que estive aqui pela última vez. Em novembro do ano passado vim rapidamente a Porto Alegre mas, dessa vez, a viagem se estendeu a Soledade (minha terra natal) e também a Ametista do Sul, onde comemoramos o aniversário da Raquél. Minha irmã Rita, que mora nos Estados Unidos e eu não via há dez anos, veio também. Foi maravilhoso revê-la. (Antes de virmos para o sul ela ficou comigo alguns dias em São Paulo e curtimos um pouco da Pauliceia). Tudo foi muito emocionante, para dizer o mínimo. Revi Soledade, a fazenda do meu pai, meu sobrinho Henrique e sua esposa Camila, minha irmã Regina e meu cunhado Elimar e, para coroar a experiência, conheci a encantadora cidade de Ametista do Sul. Incrustrada em um vale repleto de pedreiras de ametistas, a cidade oferece inúmeras atrações culturais, gastronômicas e enológicas. Eu, que a princípio achei que teria medo de entrar em seus restaurantes e lojas subterrâneos, me surpreendi pela beleza natural dessas instalações... Em Soledade, a fazenda de meu pai, repleta de memórias da minha infância, está totalmente refeita e atualizada pela competente administração de Henrique e Camila. E minha cidade natal está bastante transformada pelo progresso que a desenvolve... Senti muito não ter tido tempo de rever meus amigos Soledadenses; mas espero poder regressar brevemente com tempo de rever a todos e, quem sabe, apresentar meu espetáculo no centro cultural de Soledade. Por falar nisso, em Porto Alegre estive com minha amiga Adriane Mottola e já acertamos a possibilidade de trazer meu solo Caio em Revista para seu teatro, o Estúdio Stravaganza, no segundo semestre. Revi alguns amigos queridos e visitei a exposição Carne, do fotógrafo Gilberto Perin, da qual faz parte uma foto minha que ele fez em 2018; também revi meu best friend fotógrafo Guto de Castro e, evidentemente, fizemos novas fotos que em breve postarei. (Numa fria manhã de outono, ele me fotografou de sunga em pleno parque da Redenção)…Volto para casa revigorado, feliz por ter voltado às minhas origens e, sobretudo, cheio de esperanças de retomar essa conexão. Que as diferenças - sejam quais forem - não ofusquem as semelhanças e identificações que nos unem a quem amamos. E que possamos caminhar juntos em direção ao bem comum da humanidade. Já deu pra perceber que desejo pouca coisa, não? Rsrsrs… Bom fim de maio a todos! Na foto, entardecer na Fazenda Santa Rita em Soledade.

terça-feira, 20 de maio de 2025

ANDY FOREVER

Rever as obras de Andy Warhol é sempre bom e surpreendente. Esse fim de semana fui, com minha irmã Rita, visitar a exposição dele na Faap. Tirando o excesso de pessoas que lotavam as dependências da exposição, foi tudo lindo. Apreciar as obras de Warhol sempre foi e será um deleite para mim. Espécie de mago do pop, tudo o que ele tocava virava arte. Há quem discorde. Mas esses não contam para mim… Já conheço quase tudo, estive em várias exposições dele aqui no Brasil e também no exterior. Sem falar nas obras que compõem o acervo do Museu de Arte Moderna de Paris, no Beaubourg. Uma das minhas preferidas está lá: Ten Lizes. O rosto de Elizabeth Taylor reproduzido dez vezes em uma tela de fundo prateado de grandes dimensões. Adoro os desenhos que ele fez para revistas e grifes, as polaroides, os filmes em parceria com Paul Morrisey, os diários, a série da Netflix feita a partir dos diários e, sobretudo, o entourage, a galera que o cercava e que ele tratava de lançar ao estrelato. E, evidentemente, sua profecia já tornada realidade, de que todos no futuro teriam seus quinze minutos de fama… Apesar de ter me irritado com o excesso de pessoas que circulavam na exposição, não deixei de ficar contente de ver tanta gente interessada em arte. Saí de lá com a sensação de que nem tudo está perdido… Nas fotos, as musas de Warhol Liza e Liz e Keith Haring na camiseta.

terça-feira, 6 de maio de 2025

HOMEM COM H

Me deixei levar pelo filme Homem Com H, cinebiografia de Ney Matogrosso com roteiro e direção de Esmir Filho, como quem embarca em uma viagem ao próprio passado. Como quem folheia um álbum de fotografias. Era a minha infância que eu via projetada na tela do cinema. Traduzida em sons e imagens. Logo no começo Ney aparece cantando no coral de que participava a canção Casinha Pequenina. Foi a música que toquei na minha primeira audição de piano no colégio das freiras em Soledade. Eu teria nove anos no máximo e tremia como vara verde. Mas nunca esqueci... A linda canção na voz de Ney abriu um portal sem volta para mim. O filme me abduziu. Não tenho críticas, só elogios. A interpretação de Jesuíta Barbosa encanta nos mínimos detalhes. Olhares. Gestos. Silêncios. Respirações. O personagem lhe caiu como uma luva. A direção de Esmir Filho, solar, moderna, traz à tona todas as experiências vividas por Ney de maneira intensa e, ao mesmo tempo, leve. Sobretudo gostosa de acompanhar. O roteiro é todo costurado por canções e shows que marcaram as diversas fases da carreira do cantor. Que eu, graças a Deus, tive o prazer de acompanhar. Me vi nos embates de Ney com o pai, na dificuldade que tinham de se relacionar, no carinho e proteção da mãe, no deslumbramento com que ele, ainda criança, assiste com ela à performance de Elvira Pagã no palco. Na descoberta da sexualidade, da capacidade de se expressar através da arte. Agradeço ao diretor Esmir Filho, sua homenagem a Ney Matogrosso homenageou também esse humilde fã do astro retratado no filme... E os garotos lindos que compõem o elenco? E a praia de Ipanema dos anos setenta e oitenta recriada pela direção de arte impecável de Thales Junqueira, que anima imagens imortalizadas pelas lentes de Alair Gomes? Demais para um senhor da minha idade, haja coração. Saí do cinema morrendo de vontade de voltar para assistir a tudo de novo... Ah, não deixem de prestar atenção em Augusto Trainotti, que faz Cato, o colega de Ney na aeronáutica. Ele já chamou a atenção como o soldado que acompanha a personagem de Fernanda Torres na cadeia em Ainda Estou Aqui. Além de um lindo rostinho que a câmera adora, ele tem muito talento como ator e bailarino... O primeiro show de Ney Matogrosso a que assisti foi Feitiço, no Teatro Leopoldina de Porto Alegre, em 1979. Depois perdi a conta de quantos outros assisti. O show Inclassificáveis assisti aqui em São Paulo e no Canecão, no Rio, na companhia dos saudosos Lidoka e Ezequiel Neves. Um dos que mais amei foi Beijo Bandido, no qual ele se apresentava com um terno branco cujo paletó tinha um forro de cetim vermelho. São muitas memórias ligadas a Ney Matogrosso, desde minha infância, quando ele surgiu com o Secos & Molhados sacudindo padrões e preconceitos, até os dias atuais. Graças ao amigo em comum que tivemos, o saudoso Ocimar Versolato, pude estar com Ney diversas vezes, não apenas em shows, mas tembém em festas do Ocimar e quando ele o levou para assistir à Terça Insana. Tenho uma caixa de CDs dele chamada Camaleão, com 17 álbuns de carreira e algumas raridades. Não paro de ouvir desde que voltei do cinema... O filme termina com a imagem impressionante do Ney Matogrosso atual e real se apresentando para uma plateia de milhares no show do Aliance Park aos 83 anos de idade. Mexe com a noção de passagem do tempo. Saí do cinema pensando que a transitoriedade, a impermanência das coisas e dos seres vivos pode ter diferentes extensões e durabilidades. Me lembrou uma frase do livro A Culpa é das Estrelas, de John Green, que diz: "alguns infinitos são maiores do que outros". É isso aí. Ney é infinito... Se você nunca viu rastro de cobra nem couro de lobisomem corre para o cinema pra assistir a Homem Com H. Nas fotos, o cartaz do filme e Esmir Filho dirigindo Jesuíta Barbosa.

sábado, 26 de abril de 2025

LENA IN HEAVEN

O ano de 1987 começou com uma perspectiva muito excitante para mim: Estrear um espetáculo em São Paulo. Eu tinha vinte e três anos, estava cursando a faculdade de teatro em Porto Alegre e, se já não fosse o bastante, era um dos integrantes do elenco do Grupo Tear, sob a regência de Maria Helena Lopes. Eu, que conhecera São Paulo na infância - quando vim visitar meus tios e primos na companhia de meus avós - agora me encantava com a Sampa cantada por Caetano Veloso. Nas noites efervescentes do Bexiga meu walkman tocava Talking Heads. Heaven era minha canção preferida: Todos estão tentando chegar no bar. O bar se chama paraíso. No paraíso a banda toca minha música favorita… Nosso espetáculo se chamava Império da Cobiça. Tinha sido criado a partir de improvisações inspiradas pelo livro Memórias do Fogo, de Eduardo Galeano. Um processo longo e por vezes doloroso. Mas sempre estimulante e encantador. Errávamos muito. Mas quando acertávamos era um deleite. E a Lena, como a chamávamos carinhosamente, invariavelmente nos conduzia ao deleite. Era o mínimo que ela buscava… De São Paulo fomos para o Rio de Janeiro. Foi quando mais me aproximei dela. Fizemos coisas juntos, passeamos, demos entrevistas, fomos ao cinema. Lembro de ter assistido com ela ao filme Veludo Azul, de David Lynch, num cinema em Botafogo. Lena me contou que fizera uma edição própria do filme: Primeiro assistiu da metade para o fim e, na sessão seguinte, do início ao meio. Só ela… Uma das minhas maiores alegrias era fazê-la rir das minhas imitações das pessoas que conhecíamos ao longo da turnê. Era quando eu sentia que a agradava de verdade. Em cena eu sabia que às vezes deixava a desejar, iniciante que era… A primeira coisa que aprendi com ela foi a escutar. Acho que foi no primeiro dia de aula na faculdade. Nunca esqueci. Levei para a vida. (Imagino o que ela diria hoje nesse mundo em que todos só falam sem ouvir nada)… Outro ensinamento que nunca esqueci: Você tem medo, mas faz. Sempre que tremo na base antes de entrar em cena ou fazer o que for preciso na vida, lembro dessas palavras e não deixo o medo me paralisar. Sigo em frente (todo cagado, mas sigo)… Antunes Filho, outro grande gênio do teatro que já se foi, a reverenciava. Era no teatro dele, no Sesc Consolação, que Lena apresentava suas encenações em São Paulo. Antunes dizia que ela não era diretora, de tão boa que era ele a considerava diretor. E ela, feminista, batia pé na defesa de seu gênero: Sou diretora! Estou na praia, no litoral norte de São Paulo, onde vim passar meu aniversário. Foi no dia dos meus anos que eu soube, por uma rede social, que ela faleceu. Desde então uma sucessão de imagens, cenas, lembranças, me invadiram. Lena risonha e feliz montada na minha Vespa para tirarmos uma fotografia juntos na frente do teatro. Lena brindando seu aniversário numa festa surpresa que fizemos para ela na sala de ensaio. Lena nos mostrando Erté em um livro de arte. Lena no meu apartamento da rua Garibaldi para assistirmos a um filme no meu vídeo cassete. Lena me fazendo repetir incontáveis vezes a frase “quero o sangue e o reino” nos ensaios da peça já estreada; acho que nunca consegui dizer aquilo do jeito que ela queria (me perdoa, por favor, mesmo in heaven)… Memórias, não apenas do fogo, mas da terra, da água e do ar… Obrigado, Maria Helena Lopes, por tudo o que você fez pelo teatro gaúcho e nacional. Obrigado, especialmente, por tudo o que você fez por mim. Por ter me olhado com carinho e atenção; por ter tido paciência com minha juventude e despreparo; por ter assistido às minhas direções (ela que não assistia a quase nada e, quando assistia, quase nunca gostava); por ter me inspirado, me aberto os olhos e, sobretudo, por ter me estendido a mão… Meu walkman não existe mais. Choro enquanto escrevo esse post ouvindo Talking Heads à beira-mar nos fones sem fio do celular… “Há, no paraíso, uma festa e todo mundo está lá. Todos partirão ao mesmo tempo. Quando essa festa acabar, ela começará de novo. Não será diferente. Será exatamente igual. O paraíso é um lugar onde nada nunca acontece”… Tenho certeza que você vai sacudir o paraíso e fazer muita coisa acontecer. Siga na luz! Na foto, Lena e Sergio preparam o brinde na festa suspresa que fizemos para ela na sala de ensaio.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

ÚLTIMO SONHO

Fim de domingo com Almodóvar… Não me refiro a seus filmes, mas à leitura da obra O Último Sonho, uma coletânea de doze contos do cineasta espanhol. Sou fã de Pedro Almodóvar num grau meio difícil de mensurar, algo que beira a mais louca obsessão. Referindo-se a esse livro, ele diz ser o mais próximo que já chegou de uma autobiografia. Não há como não concordar, Almodóvar é quase sempre muito autobiográfico no que quer que faça. Mesmo quando não fala necessariamente de si mesmo: Pode ser da mãe, da Espanha, de uma cantora de boleros, de um livro que leu ou de algum filme a que assistiu. E eu, pela total identificação, quase sempre acabo acreditando que fala de mim. Como no conto Romance Ruim, no qual discorre sobre a vontade que tem de escrever um romance, ainda que não seja o romance ideal. Fala também da necessidade que sente de estar com pessoas e conhece-las, o que também me reflete bastante. Eu tenho essa necessidade e espero nunca vir a perde-la. Assim como a vontade de sair, de ver coisas, viver coisas, descobrir coisas novas e me conhecer melhor através delas. Ou pelo menos, como cantou Rita Lee, saber que “enquanto estou vivo e cheio de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz”… No fim de semana que hoje se encerra estive com amigos queridos, assisti a espetáculos de teatro, comemorei com minha amiga Pilly Calvin, que há anos não encontrava, o seu aniversário. Saí da minha rotina de novo idoso, me sacudi, me testei, descobri limites e restrições. Nada que me impeça de ir em frente. Gosto muito da vida, de estar nela. Dia desses, visitando minha amiga e "ídola" Cida Moreira, que se recupera de uma lesão no braço, enquanto conversávamos cheguei à conclusão de que tenho (temos) uma conexão com a vida. Com o estar vivo. Acordar pela manhã e ser grato por estar ali. Pelo dia que começa. Pela luz do sol de outono que invade a janela. Isso. E muito, muito mais… Meu aniversário se aproxima e eu, taurino que só, me ponho a contar os dias e a comemorar antecipadamente. Que a nova idade que chega me dê mais vontade de estar vivo. Apesar de. Além de. Através de. E sobretudo…. Quando digo que não me refiro aos filmes, mas à leitura do livro, minto. Na semana que passou revi O Quarto ao Lado, que agora está disponível na Netflix. Mesmo sem o impacto da grande tela do cinema o filme mantém sua força. E muito do que escrevo agora também é fruto de te-lo revisto. Como podem perceber, Pedro Almodóvar me influencia sempre e de todas as maneiras… Bon avril à tous! Na foto, a capa de O Último Sonho.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

MACÁRIO

Volto aos posts relativos às minhas direções em teatro. Achei que já tinha escrito aqui sobre todas elas, mas me dei conta de que faltaram algumas… Meu trabalho de conclusão do curso de direção na faculdade de Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul foi uma adaptação do Macário, de Álvares de Azevedo, no segundo semestre de 1989. Eu já tinha feito muito sucesso com meu trabalho anterior, a Lisístrata de Aristófanes, que me rendeu os prêmios Açorianos e Sated de melhor diretor e o troféu Scalp de teatro. Decidi então fazer algo mais cult, low profile, para poucos mesmo. Apenas três apresentações, à meia-noite, no teatrinho do Dad, do qual retirei algumas poltronas para limitar ainda mais o número de espectadores. Para o papel título escalei o então iniciante Fernando Washburger, que despontava como promessa de jovem ator. No papel de Satã, o antagonista, a talentosíssima Lucia Serpa e, se desdobrando em todos os personagens femininos, a não menos talentosa Ciça Reckziegel. Explorando todo o espaço cênico e a plateia, minha encenação tinha marcações nada realistas. O que conferiu um certo ar expressionista/pós-moderno ao espetáculo. (Eu estava numa fase Gerald Thomas/Bob Wilson, buscando o teatro de imagens, mais experimental e menos popular, digamos assim). Muito dessa atmosfera devo creditar à incrível iluminação concebida pelo saudoso Hermes Mancilha. Com pouquíssimos refletores e uma criatividade sem limites, ele transformou em sonho tudo o que tocou. E em realidade tudo o que sonhei... A peça teve a participação de Guto Vilaverde, nu, em uma inusitada Pietá nos braços de Ciça Reckziegel. Marlene Goidanich se encarregou da preparação vocal e da belíssima sonoplastia. Meu professor orientador foi o querido Beto Ruas, de quem guardo lembranças de muita identificação e afeto. Minhas colegas Nora, Ilana e Lucia me ajudaram na produção e Nora se encarregou dos figurinos. Infelizmente não tenho nenhum registro do espetáculo. Quem viu, viu. Antonio Holfeldt fez uma inspirada crítica no jornal Correio do Povo, falando de Macário e da importância do DAD/UFRGS. Claudio Hemmann assistiu, assim como várias celebridades locais. A diretora Bia Lessa, que estava em cartaz na cidade, foi assistir e, depois da peça, disse que tinha achado o diretor “um gatinho”, o que me deixou lisonjeado rsrsrs… Gosto muito deste meu trabalho, como diretor é um dos meus preferidos. Uma pena que não tenha sido gravado nem fotografado. Mas, como tudo na vida é transitório, a própria vida inclusive, registro aqui como tentativa de preservar a memória dos meus espetáculos. Nas fotos, o programa do espetáculo; feito artesanalmente como quase tudo o que fazíamos à época; nosso teatro, inclusive.

segunda-feira, 31 de março de 2025

TEATRO DOS BONS

Ontem fui assistir pela segunda vez a O Antipássaro, espetáculo solo do ator Nilton Bicudo, com textos da poeta Orides Fontela e direção de Elias Andreato. Nesta nova temporada no Teatro Ágora há uma pianista executando ao vivo a belíssima trilha sonora. O que já era bom ficou ainda melhor. Niltinho exala talento pelos poros. Sua entrega ao texto e ao teatro em si é extremamente tocante. Nunca fui muito fã de poesia, ainda mais no teatro. Mas ele se apropria com tamanha força das palavras de Orides que elas nem soam como poemas, mas como grandes verdades que tocam a plateia e calam fundo nos que se permitem aprecia-las. Além de dizer os poemas, Nilton também dá voz à própria Orides com falas extraídas de entrevistas que ela deu para a televisão em programas como o de Jô Soares, por exemplo. É quando o ator acrescenta delicadas doses de humor ao lirismo do espetáculo. Nisso, diga-se, ele é mestre. Vide a sua inesquecível performance em Myrna Sou Eu, outro solo em que dava vida ao pseudônimo feminino de Nelson Rodrigues. Esse Antipássaro é uma pequena joia ornada das mais belas filigranas. A noite de domingo e o mês de março foram encerrados de maneira brilhante... Na quinta-feira fui assistir a Não Me Entrego, Não, espetáculo do ator Othon Bastos, que impressiona pela vitalidade e lucidez aos noventa e um anos de idade. Desde que entra em cena e é imediatamente aplaudido até o final de quase duas horas de peça, ele dá um show de carisma e talento puro. Com roteiro e direção de Flávio Marinho, o espetáculo revisita a longa e profícua carreira deste grande ator dos palcos, da televisão e do cinema. Uma aula de cultura brasileira. E a agradável sensação de que a passagem do tempo a tudo melhora... Tão bom quanto fazer teatro é assistir a teatro dos bons, como esses dois inesquecíveis espetáculos que tive o prazer de ter ido essa semana. Longa vida a O Antipássaro e a Não Me Entrego, Não! Nas fotos, Niltinho e Othon bastos recebem os merecidíssimos aplausos.

domingo, 16 de março de 2025

ELIS 80

Hoje é domingo e eu estou bebendo vinho branco e ouvindo Elis. Até aí, nada de novo. Quem me conhece sabe que beber vinho branco e ouvir Elis são duas das coisas que mais faço na vida. O que há de especial é que, se ainda estivesse viva, Elis completaria oitenta anos amanhã. Como eu normalmente não bebo às segundas-feiras, adiantei a comemoração para hoje… O engraçado é que tudo hoje é diferente. Ouvir Elis, comemorar seu aniversário e, até mesmo, beber vinho branco. Costumava comemorar essa efeméride com minha amiga Anne, no apartamento dela, na época em que éramos vizinhos na rua Garibaldi, em Porto Alegre, na década de oitenta do século passado. Hoje estou comemorando sozinho no meu apartamento da Alameda Franca, em São Paulo, onde já moro há 29 anos; e onde, diga-se de passagem, seria vizinho de Elis, que morava há poucas quadras daqui, na rua Doutor Mello Alves... Hoje ouço Elis com muito mais prazer. O prazer de fruir das sutilezas e nuances da sua interpretação, dos arranjos, das letras das canções. Aliás, isso seria um post à parte, a qualidade e beleza das letras das canções que se perderam com o tempo por aqui. Ela teria um trabalho pesado para garimpar algo que prestasse para gravar hoje em dia. Pérolas como os versos de João Bosco e Aldir Blanc na canção Cabaret: “No drama sufocado em cada rosto, a lama de não ser o que se quis” ela não encontraria por mais fundo que mergulhasse… Beber vinho branco também é uma outra experiência hoje em dia. A começar pela qualidade do vinho que bebíamos na época e a do que bebo hoje em dia. Junte-se a isso os anos vividos, as experiências adquiridas, as viagens, as memórias, misture bem, deixe descansar e aprecie com moderação (Não muita)… Depois de ter ouvido vários de seus álbuns, ter se emocionado, se divertido e ter tido mais uma vez renovada a certeza de que Elis era a maior cantora do Brasil, feche os olhos e grite bem alto (nem que seja para dentro ou contra uma almofada): Viva Elis Reginaaaaa!!!! Nas fotos, Elis fotografada por mim no show Saudade do Brasil, no Canecão, e pela lente da genial fotógrafa Vânia Toledo que, infelizmente, também já nos deixou, para a capa do novo disco que não chegou a lançar.

segunda-feira, 10 de março de 2025

ADELAIDE BACALHAU

Domingo pela manhã, enquanto preparava o almoço, me deparei com uma postagem no Instagram que trazia uma sugestão para você criar o seu nome de drag. Bastaria juntar o nome da sua avó com a última coisa que você comeu. Minha avó materna, a única que conheci, se chamava Adelaide. Eu estava preparando um bacalhau e, como tinha provado diversos bocados dele enquanto cozinhava, não deu outra: Meu nome drag virou Adelaide Bacalhau. Gostei tanto que fiquei rindo sozinho diante do fogão. Achei meio parecido com nome de chacrete (millennials, dêem um Google) ou de vedete do teatro rebolado (idem, idem)… Depois fiquei pensando em como seria a minha drag queen, como se definiria a sua personalidade. Acho que ela não seria muito dada nem muito simpática. Seria bem exigente, um pouco chata, mesmo. Metida. Blasé. Não toleraria erros de português. Escritos ou falados. Não teria muita paciência para as trends e memes da internet. Já estaria de saco cheio de todos esses jargões relacionados a Fernanda Torres: nós vamos sorrir, sorriam, totalmente não sei o quê, a vida presta (esse, aliás, até a própria já não deve aguentar mais)… Em peças de teatro e em filmes que considerasse chatos, Adelaide Bacalhau certamente se levantaria e sairia na metade. Ou antes, até... Se ela fosse visitar essa exposição em homenagem a Ney Matogrosso que o MIS está exibindo, sairia desencantada com a pobreza e a feiúra. Imagina, um artista do quilate de Ney receber essa homenagem chinfrim! Parece que a gente está no backstage de um estúdio de televisão, tudo colado em tapadeiras, um monte de panos transparentes atrapalhando a visão! Mas, deixa quieto... Dedé Baca (vamos ser íntimos) também não aceitaria esse remake da novela Vale Tudo que a Globo está a requentar. Principalmente Humberto Carrão, com aquela cara de militante, fazendo o papel do milionário Afonso Roitman… Adelaide Bacalhau seria também muito rica. Econômica e culturalmente. Dedicaria boa parte do seu tempo à leitura de clássicos da literatura brasileira e universal. O que lhe renderia vasto vocabulário, que ela usaria só para humilhar as incultas e iletradas. Cinéfila que só, assistiria a muitos, muitos filmes e também a séries de streaming. Vestiria Courrèges da cabeça aos pés. De vez em quando Paco Rabane ou Pucci. Ah! Só frequentaria eventos sociais como convidada, jamais se submeteria a fazer recepção ou animação de festas! Coisa mais cafona... Pensando bem, Adelaide Bacalhau, minha persona drag, seria muito parecida comigo. Na verdade, eu mesmo. Só que com peruca, cílios postiços, salto alto e língua afiada… Nas fotos, a eterna chacrete Rita Cadillac e o modelito Courrèges vintage preferido de Adelaide.

terça-feira, 4 de março de 2025

MARÇO SOLAR

Abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer! O mês de março entrou solar e superaquecido, desmentindo a canção de Tom Jobim que fala das águas de março fechando o verão. Entrou, também, supercarnavalizado. Eu, que já tinha jurado nunca mais participar da folia, no domingo pela manhã acabei me jogando no vintage e singelo bloco Somos Todos Carmen, do meu amigo Rafael Leidens, que presta homenagem à eterna Carmen Miranda, símbolo do sucesso do Brasil no exterior. Fazer o quê? Minha carne é de carnaval, meu coração é igual e tudo e talz. Fui fantasiado de Gal Tropical, homenageando nossa outra diva, Gal Costa, provando que, como diz o nome do bloco, Somos Todos Carmen mesmo. Me diverti horrores, revi amigos queridos, dancei pencas, só não fiquei mais tempo porque o salto da sandália quase me matou. Da próxima vez vou inventar uma fantasia com tênis... E nem tudo é folia no carnaval de São Paulo. No sábado à tarde fomos assistir ao impressionante espetáculo Sagração, da Cia. Deborah Colker, acompanhada pela OSESP, que executou ao vivo a trilha sonora na não menos impressionante Sala São Paulo. Inspirado em A Sagração da Primavera, de Stravinsky, o espetáculo mescla trechos da composição original com sonoridades e cânticos indígenas brasileiros. Emocinante, para dizer o mínimo. Deborah segue se reinventando e se superando sempre. À noite ainda fomos no esquenta pré-desfile chez mon ami Edson Cordeiro, para ver o mago dos pincéis Cabral realizar a maquiagem do anfitrão, que desfilou ao lado do marido Oliver na Estrela do Terceiro Milênio, escola de samba paulistana cujo enredo prestou homenagem à comunidade LGBTQIAP+ (me perdoem se faltou alguma letra na sigla)... E no domingo também teve filme brasileiro premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro! Merecidíssimo reconhecimento da academia de cinema a Ainda Estou Aqui, obra irretocável de Walter Salles. Já estou louco de vontade de ir ao cinema rever... Para fechar a folia momesca com chave de ouro, hoje, terça-feira gorda (vamos dizer mardi gras, para não ferir suscetibilidades) tivemos almoço mexicano chez mon ami Tude Bastos. Tude e seu marido Peter receberam os amigos com animados drinks e tacos e guacamoles regados a muita música e boas conversas até o entardecer do último dia de carnaval. Voltei para casa cheio de esperanças e ilusões, mas certo de que todo carnaval tem seu fim... Para encerrar, uma daquelas coisas que chegam pra gente na internet e que não tem como não compartilhar: Perguntada se tamanho para ela é documento e se prefere um pequeno brincalhão ou um grandão bobão, uma travesti responde: Prefiro um que pague! Pagou já me ganhou, eu me entrego, eu me dedico, eu dou a vida! Rsrsrs... É a mais pura verdade, queridos leitores. Sabedoria popular, muito melhor do que auto-ajuda. Na vida a gente precisa se entregar, se dedicar, dar a própria vida. É claro que a recompensa nunca será a mesma para todos, por maior que seja o esforço. Tem gente que persegue um sonho a vida inteira e não consegue realizá-lo. Outros, por muito menos, conseguem tudo. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, sem paixão não dá nem para chupar um picolé, não é verdade? Vamos seguir tentando. A gente não precisa mirar no Oscar, evidentemente. Mas há tantas outras coisas legais para conquistar! Fica a dica para esse ano que finalmente começa por aqui. Bom mês de março a todos! Na foto, eu encarnando Gal no bloco Somos Todos Carmen.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

FRAGMENTOS

No bloco de notas do meu celular tenho uma pasta chamada: Fragmentos para o blog. Lá coloco frases, ideias, trechos para serem desenvolvidos em futuros posts. Percebi que alguns deles já estavam lá há tempos e ainda não tinham sido desenvolvidos. Transcrevo-os aqui, como fragmentos mesmo, para dar uma ideia de como um post às vezes começa... -Paris é uma cidade muito linda. Quem não a conhece ou, pelo menos, não a conhece muito bem, talvez não saiba como ela se desenha. É mais ou menos assim: Existe a Paris entre muros, que é a cidade preservada tal como era no seu auge, e a Paris moderna dos bairros que a cercam, os banlieus. O que tenho a dizer em sua defesa é que a cidade é sempre linda. Mesmo quando mais ao sul, Paris se parece com São Paulo. É o caso de Vanves. Se você sai no terraço de um prédio nesse bairo da capital francesa você jura que está em São Paulo. Já fui muito mal interpretado quando disse isso a um francês morador do bairro. Mas, como eu amo Paris e amo São Paulo, acho as duas cidades lindas. E compará-las, para mim, sempre será um elogio... -Muito difícil falar de O Quarto ao Lado, o novo filme de Almodóvar, sem dar spoiler. Bem, é muito difícil falar dele. Não o digeri ainda, estou sob o impacto do filme. Qualquer pessoa que tenha mais de quarenta anos já viveu um grande amor, já teve desilusões e, certamente, já perdeu pessoas amadas. É também nessa fase, digamos “o outono da vida”, que a gente se conscientiza mais da inevitabilidade da morte; e tem a percepção de que ela está cada vez mais próxima. Ainda assim, parece que nunca estaremos preparados para lidar com ela. Decidir, então, sobre ela, menos ainda. Ousar programá-la, escolher dia, hora e local nem pensar. Envolve crenças religiosas, leis, tabus, preconceitos e uma série de impedimentos. Levanto aqui tudo isso porque também me incluo no rol das pessoas que tem dificuldade de lidar com a morte. Sofri muito com todas as pessoas amadas que já perdi e sofro só de pensar que uma hora qualquer irei me perder também. Pois é disso que o filme trata. A personagem de Tilda Swinton está com câncer terminal e, exausta de sofrer com o tratamento, decide morrer. Ao contrário da Suíça, que permite a eutanásia assistida, nos Estados Unidos, onde se passa a história, ela é considerada crime. A personagem convida uma amiga que não via há anos para ser sua acompanhante nos dias finais da sua existência. Ah, e consegue a pílula letal na deep web, de maneira totalmente ilícita. Juro que eu não queria ser a pobre dessa amiga... -Nesse momento, em que tanto se discute a inteligência artificial, resolvi falar do seu oposto: A burrice natural. Diferente do seu antônimo, ela não precisa ser criada ou recriada por programas de computador; nasce com a pessoa e, através dela, se espalha contagiando toda a manada. Digo, a galera. E, dessa forma, sempre que algo aponta para o desenvolvimento, para a expansão, para a evolução ou para a transcendência, a burrice natural naturalmente (com o perdão da redundância) se expressa de maneira opositora... -Bateu legal? Bateu gostoso? Perguntou o senhor idoso ao seu amigo, idoso também como todos os ocupantes da mesa do bar. Ele se referia a um shot de cachaça que o outro acabara de sorver. Sim, respondeu o amigo. Ainda bem, porque na nossa idade o prazer é esse: A cachaça, a comida, os amigos. E prosseguiu: Quando meu pai perdeu o meu irmão ele ficou muito triste. Quando perdeu a minha irmã, ele desacreditou completamente de Deus. Quando a gente perguntava pra ele de Deus, ele respondia: Se Deus existe, se existe algum deus, ele coloca a gente aqui no mundo e diz: Se vira! Posso te fazer uma pergunta? Os seus filhos são exatamente o que você queria que eles fossem? Nessa hora o meu drink bateu e perdi a continuação da conversa... -O ônibus demorou horrores para passar. Fiquei fritando no sol escaldante de fim de verão. Ainda bem que pelo menos meu rostinho e minha calva estavam protegidos pelos óculos escuros, o chapéu e o protetor solar. É claro que quando ele finalmente chegou retirei o chapéu para que os demais percebessem minha idade avançada - evidenciada pela brancura dos poucos cabelos - e me deixassem passar na frente... Por hoje é só! Acho que faz juz ao título, não? Nas fotos, anoitecer em Paris e as divas de Alomdóvar em O Quarto ao Lado.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

1978

No poster fixado na parede branca do apartamento, Mafalda - a personagem de Quino - aponta para o cacetete de um policial e diz: Esta é a borracha de apagar ideologias; à direita do poster, completando a composição, uma samambaia de metro pende do teto até quase ao chão, no qual repousam almofadões sobre o carpete que reveste a sala do apartamento. No toca-discos, um LP de Chico Buarque gira cantando “meu caro amigo eu não pretendo provocar nem atiçar suas saudades, mas acontece que não posso me furtar a lhe contar as novidades” antecedendo um de Milton Nascimento que aguarda na pilha de discos para ser rodado... O colégio novo da capital me assusta. Ando cabisbaixo pelos corredores, tentando não chamar atenção. Os meninos do segundo e do terceiro ano são cruéis, terríveis, não poupam ninguém. Alguns da minha sala também são. Morro de medo de ser obrigado a jogar futebol nas aulas de educação física. Felizmente estão oferecendo judô como opção. Assim me inscrevo e chego até a faixa amarela. Ano que vem não sei mais... Faço teste e sou aprovado para participar do grupo de teatro do colégio, cujos ensaios são à noite. Eu morava no Bom Fim e o colégio era no centro. Eu ia e voltava a pé para os ensaios, sozinho, tarde da noite, com apenas quinze anos de idade. Sendo que aparentava muito menos, quase uma criança de doze. Por incrível que pareça aos olhos de hoje em dia, a noite me acolhia. Entre os esquisitos, malucos e desviados do teatro eu era apenas mais um. O problema era o dia, cheio da crueldade dos intolerantes e preconceituosos que me rotulavam (para dizer o mínimo)… O bom eram os amigos, a convivência com minhas irmãs, nossos pais que vinham do interior nos visitar seguidamente, os feriados que eu ia passar com eles em Soledade, as férias de julho e as de verão. Os shows no teatro Leopoldina, as peças de teatro (poucas, quase todas eram proibidas para menores de dezoito anos), meu professor de literatura que nos levava para assistir aos espetáculos e depois bater um papo com os artistas. Foi assim que tive a oportunidade de ver Bibi Ferreira em Gota d’Água, Fernanda Montenegro em É e Lilian Lemmertz em Patética, entre outras… Meu primeiro porre em uma festinha de amigos em Soledade. A bebida se chamava Fogo Paulista (algo profético, não?) e depois de encher a cara e passar mal me levaram pra casa e me entregaram para os meus pais. Lembro que caí de joelhos no tapete da sala, minha mãe me ergueu e não lembro mais nada… “Você sonhava que ia ser melhor depois. Você queria ser o grande herói das estradas. Tudo o que você queria ser. Sem medo”! Minha primeira paixão por um amigo. Até então só me apaixonara por meninas. E agora, como é que faz? Pode isso? Meu Deus do céu, me ajuda. Acho que prefiro morrer… Meu pai me levou no alfaiate para encomendar meu primeiro terno, para eu usar na formatura da minha irmã. Completo: calça, paletó e colete. Como o evento seria no verão, escolhi um linho beje, para usar com camisa branca. Ninguém, nem mesmo meu pai, conseguiu me convencer a usar gravata. Deixei a gola da camisa aberta, bem ao estilo de John Travolta no filme Embalos de Sábado à Noite… À tarde, as aulas de piano eram na Rua da Praia, também no centro da cidade. Sempre dava para aproveitar e comer um cachorro-quente molho e mostarda na Confeitaria Princesa ou uma bomba royal na Banca 40 do Mercado Público. (E de vez em quando comprar um bombom de cereja com licor na Kopenhagen)… O filme Chica da Silva, de Cacá Diegues, tinha mexido muito comigo um ano antes, quando ainda morava no interior. Vi que estava em cartaz no cinema de um centro comercial (o equivalente aos shoppings de hoje). Fui até lá e roubei o cartaz, que estava colado apenas com fita adesiva, em uma das vitrines do local. Mandei fazer um pôster que ficou por anos no meu quarto de Porto Alegre e depois transferi para o quarto de Soledade. Zezé Motta foi por anos meu “crush”… Eu já sabia que não cabia mais na pequena cidade do interior. Mas Porto Alegre ainda era grande demais para mim. Mais do que grande, era assustadora. Nada que o tempo, senhor de toda sabedoria, não se encarregasse de transformar: em poucos anos a Porto Alegre da minha juventude também ficaria pequena para mim e eu iria me lançar em voos ainda mais altos pelo Brasil e o mundo. Gabeira ainda nem tinha voltado do exílio com a tanga de crochê, o que iria ajudar muito nas mudanças que se seguiriam… Parece que foi ontem. Mas já faz quase cinquenta anos… Na foto, a família toda embecada para a festa de formatura da Raquél.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

FEVEREIRO CHOO CHOO

O mês de fevereiro entrou com tudo, depois de extenso janeiro quente & chuvoso, mais a cara de São Paulo impossível... O choo choo do título refere-se à expressão cantada por Caetano Veloso na canção Língua (Do álbum Velô, de 1984) e exalta a exímia e rapidíssima dicção de Carmen Miranda, nosso símbolo oficial do sucesso brasileiro no exterior na primeira metade do século passado. Atropelado por uma intoxicação alimentar que me prostrou por quase uma semana, acabei sendo impedido de comparecer à estreia da peça Gertrude, Alice e Picasso, na qual minha amiga Patricia Vilela dá vida a Alice B. Toklas, a famosa companheira da não menos famosa escritora Gertrude Stein. Falta que tratarei de reparar já no próximo fim de semana... Felizmente me recuperei a tempo de conferir o impecável show de Edson Cordeiro fazendo homenagem à nossa bombshell-mor Carmen Miranda. O repertório de Carmen caiu como uma luva na voz e na performance de Edson e ele pôs a plateia da Casa de Francisa lotada pra pular da primeira à última canção desse já histórico e inesquecível show que precisa ser urgentemente reprisado nas melhores casas do ramo. Edinho cantou acompanhado dos virtuosos e talentosíssimos integrantes do Trio Gato com Fome, que caiu como a outra mão da luva. Ah, e vestido pelo Crochê do Japa, do meu amado Weidysan, que criou um bolero preto ornado de bananas amarelas que deixou tudo ainda mais lúdico e divertido. Há tempos não me divertia tanto em um show (mesmo sem poder beber uma gota de álcool)... Ainda na velô choo choo, tenho lido muito nesse verão. Graças ao já citado aqui Biblion, a biblioteca virtual do Estado de São Paulo. Se eu já era um leitor contumaz, agora leio o tempo todo, até mesmo na bicicleta ergométrica enquanto pratico meu cárdio na academia. Gosto muito da ideia de ser fisgado por um aplicativo. Logo eu, o último dos analógicos que nem banco virtual ou aplicativo de táxi tem. O bom é que essa modernidade tem me apresentado a antiguidades que eu ainda desconhecia, como o romance brasileiro Bom Crioulo, do naturalista Adolfo Caminha. Apesar de ter sido lançado ainda no século dezenove (1895), a obra é impressionantemente moderna, tratando da homossexualidade de maneira explícita ao retratar o romance do ex-escravo Amaro com o jovem e belo grumete Aleixo. Perto de Adolfo Caminha escritores como Tennessee Williams e André Gide (que são bem posteriores, já século vinte) parecem tias velhas enrustidas... E por falar em símbolo oficial do sucesso brasileiro no exterior, Fernana Torres atualiza essa ideia no melhor estilo, não só encantando a todos com sua belíssima performance no filme Ainda Estou Aqui, mas também arrancando risadas dos entrevistadores e do público em todos os talk shows estrangeiros por onde passa. Vi na internet alguém comentar que é muito difícil ser engraçado em outro idioma. Ora, é muito difícil ser engraçado, ponto. Quem é engraçado consegue sê-lo em qualquer idioma, vide Patrícia Wood et moi, quando morávamos em Paris, e enchíamos de sorrisos a Rue des Écouffes - onde morávamos no Marais - com nosso humor brasileiro totalmente adpté au français. Engraçado também tem sido ver as pessoas na internet tentando desesperadamente pegar carona no sucesso de Fernanda. Seja postando fotos com ela de trabalhos que fizeram juntos, tietando simplesmente a atriz ou simulando uma intimidade que a gente sabe que não existe... E como fevereiro é um mês mais curto do que os outros, preciso correr para não perder mais nada além do que já perdi na minha convalescença gastro-intestinal (nunca pensei que escreveria essa palavra). Hoje pela manhã me senti indescritivelmente feliz ao tomar meu prosaico café com leite acompanhado de pão com manteiga e frios, como faço sempre e estive privado durante uma semana: Para terminar citando nosso novo sucesso internacional, tive a certeza de que "a vida presta"... Bom fevereiro a todos! Nas fotos, Edson Cordeiro canta Carmen Miranda vestido pelo Crochê do Japa, Patrícia Vilela em versão lesbian chic de Alice B. Toklas, Fernanda Torres mostra as pernas para o mundo e Carmen em si, a precursora da coisa toda.

sábado, 25 de janeiro de 2025

CASO SÉRIO

Meu caso de amor com São Paulo não é mais caso. Já virou casamento mesmo. Desde que cheguei aqui de mala e cuia em 1996 a coisa foi ficando cada vez mais séria. Como em qualquer casamento, nem tudo são flores. Às vezes brigamos, ficamos sem falar um com o outro mas, felizmente, a poeira acaba baixando e voltamos às boas... Hoje estou muito feliz comemorando com Sampa seus 471 anos. E posso dizer: Ela está uma gata! O mais impressionante é que não há rotina no nosso relacionamento: O tédio, por exemplo, é algo que passa longe. E ela segue me surpreendendo... Minha mais recente paixão é o aplicativo biblion, uma biblioteca virtual que o governo do estado oferece gratuitamente a todos os cidadãos paulistas. Logo que baixei o app me lancei na leitura (ou melhor, releitura) de Vagas Notícias de Melinha Marchiotti, do escritor paulista João Silverio Trevisan, de quem sou fã desde os remotos anos oitenta do século passado. Aliás, o romance é a mais perfeita tradução dos anos oitenta em São Paulo. Me traz muitas lembranças de quando estive aqui com meu grupo de teatro de Porto Alegre (O Tear, de Maria Helena Lopes) em 1987 e me encantei com a noite paulistana. Há filmes que retratam bem essa atmosfera, como Anjos da Noite, de Wilson Barros. E livros, como os de Glauco Mattoso... O verão de São Paulo segue inconstante & bipolar, com insanas tempestades que, do nada, a tudo devastam e alagam (ontem teve enxurrada dentro de uma estação do metrô!) para logo depois voltar tudo ao normal, como se nada tivesse acontecido. Amo-te, Sampa, volúvel e ao mesmo tempo fiel... Ontem também teve a estreia dos paulistas Ary França, Cassio Gabus Mendes e Zezé Barbosa no espetáculo Uma Ideia Genial, com direção do também paulista Alexandre Reinecke. Noite linda de comemoração entre amigos e colegas de profissão... Tem me incomodado nos programas esportivos (mais do que ver técnicos serem chamados de professores) ver times serem chamados de elenco. Poxa! Elenco sempre foi o coletivo de atores. O de jogadores sempre foi time. Náo basta o futebol ficar com o público, os patrocinadores e todo o espaço na mídia? Precisa roubar o nosso coletivo? Fica a reflexão... Termino citando Caio Fernando Abreu, gaúcho morador de São Paulo como eu: "Pode ser lugar comum, mas Sampa é definitivamente um caso de amor mal resolvido: Ela já deu na tua cara, você já deu na cara dela, você já bateu forte a porta de casa jurando vingança e nunca mais voltar! Mas voltou sempre"... Afinal de contas, como já cantou o Premê, é sempre lindo andar na cidade de São Paulo... Feliz aniverário, Sampa! Na foto, SP no traço do artista Gregório Gruber.

domingo, 19 de janeiro de 2025

BABY

Eu não dava nada pelo filme Baby, em cartaz nos cinemas. Só a sinopse tinha tudo para me fazer passar longe: Garoto sai de um centro de detenção juvenil e se vê sem rumo nas ruas de São Paulo, sem contato com seus pais e sem recursos para reconstruir sua vida. Durante a visita a um cinema pornô ele encontra Ronaldo, um homem mais velho, que ensina ao rapaz novas formas de sobrevivência. Ui! Que medo... Mas sabe aquela metáfora manjada do lírio que nasce no lodo? É exatamente isso: Baby é uma linda história de amor, amizade e empatia em meio ao mais infecto bas-fond. De onde a gente só espera violência e crime é que brotam esses sentimentos, tão raros hoje em dia. Que o centro de São Paulo é dominado pelo tráfico de drogas e pela prostituição a gente já sabe. Comigo está tudo azul, contigo está tudo em paz: Vivemos na melhor cidade da América do Sul. A novidade é o zoom que o filme faz na vida dos integrantes desses grupos. A humanidade que pulsa de maneira comovente e nada piegas ou apelativa. Os protagonistas tem muito carisma, a gente torce por Baby e Ronaldo. Queremos que as coisas deem certo para eles. Baby é jovem, frágil, abandonado, mas se vira. Ronaldo é rodado, tem casca grossa, mas é puro afeto, generosidade e ternura. Aposto que é isso que tem encantado as plateias estrangeiras por onde o filme tem sido exibido com sucesso. O mundo está frio, briguento, adorando odiar... Eu já tinha gostado de Corpo Elétrico, o filme anterior desse realizador, Marcelo Caetano. Mas Baby me surpreendeu. O filme encerra ao som da belíssima Valse, de Tom Jobim, que se não me engano foi letrada por Ronaldo Bastos e gravada por Milton Nascimento no álbum Clube da Esquina 2 com o título de Olho d'Água. Nesse verão agradável de São Paulo, com a lua minguante e nubladinha, é um bom programa para os que, como eu, ainda acreditam no cinema nacional e nas relações humanas. Pois, como canta Alcione na trilha sonora, a volta do mundo é que dói lá no fundo, a volta do mundo é questão de segundos. Enquanto isso, no bailão, Dalida canta "Laisse moi dancer" e o globo de espelhos gira... Na foto, o belo cartaz do filme.