quarta-feira, 30 de setembro de 2020

RATCHED

Queria muito encerrar o mês de setembro com uma imagem glamurosa. Por isso não resisti quando me deparei com essa foto da musa Sharon Stone no seriado Ratched, do Netflix. Confesso que tive muita dificuldade quando comecei a assistir. Logo no início do primeiro episódio há uma matança muito cruel de vários padres. Sangue e tortura são coisas que a princípio não consigo visualizar impunemente. Desisti de seguir assistindo. Quando comentei com meu amigo Luís Artur Nunes, que estava devorando a série e queria muito comentá-la comigo, ele disse que eu era muito delicado. Respirei fundo, me enchi de coragem e, para não me sentir tão mariquinhas, retomei. Ainda bem! Logo na sequência do assassinato dos padres começam cenas de grande beleza plástica e direção de arte impecável. Eu já sabia o que me esperava, tanto para o belo quanto para o horrível, pois conheço e sou fã de tudo o que é criado por Ryan Murphy. Já tinha passado por maus bocados em American Horror History... Mas dessa vez ele se superou. A série se baseia na história da enfermeira Ratched, do filme Um Estranho no Ninho. E, apesar do horror de muitas cenas, tudo o mais é envolto em estonteante beleza e glamur. A começar pelos cenários deslumbrantemente art-déco, passando pelos figurinos e cores de fazer inveja a Almodóvar, até as contagiantes interpretações dos atores, impecavelmente escalados para cada um dos personagens que compõem essa trama sinistra. Nem preciso dizer que assisto só durante o dia, tal o meu cagaço! Rsrsrs... São somente oito episódios, de modo que estou poupando e assistindo petit à petit, para que o deleite se prolongue um pouco mais. Espero que o mês de outubro que amanhã se inicia nos seja assim também: Envolto em beleza e glamur, posto que coisas horríveis não nos faltam nesse momento sombrio que estamos vivendo. E é sempre bom lembrar que a realidade é muito maior do que a que nos é apresentada diariamente, focada principalmente nos problemas. Além e apesar de tudo, há muitas coisas boas acontecendo no mundo. Bom outubro a todos!

domingo, 20 de setembro de 2020

VETERANOS

Com a reprise de Mulheres Apaixonadas no Canal Viva, me deparei com a saudosa Carmen Silva fazendo o papel da fofíssima avozinha maltratada pela neta vilã vivida por Regiane Alves. Fiquei pensando no recém-surgido movimento/hashtag eu quero veteranos na TV e em quantos deles já nos deixaram, como a queridíssima Carmen. E lembranças me invadiram... Quando ainda morava em Porto Alegre recebi o convite de Claudio Hemmann - outro saudoso veterano - para dirigir a comédia A Ciumenta Velha, de Joaquim Alves Torres, que seria apresentada na abertura do Festival de Teatro de Canela e cuja protagonista seria Carmen. Eu adorava a trajetória dessa atriz, que ficara famosa em papéis televisivos sem deixar de morar em Porto Alegre. Hoje isso ocorre com maior frequência; à época, pelo menos para mim, era inédito. Começamos as leituras e, logo no primeiro encontro, Carmen, sempre adorável, me chamou a um canto da sala e disse, muito espontaneamente: Escute, eu tenho idade para ser sua avó. Mas eu sou uma atriz que gosta muito de ser dirigida. Portanto, pode me dizer Carmen faça assim, Carmen não faça assado, não precisa se inibir. Olha que fofa! Num segundo momento os ensaios passaram a ser na casa dela, na zona sul da cidade. Em uma determinada cena de briga do casal, o ator que fazia seu marido na peça, José Baldissera - outro que já nos deixou - avançava para ela com uma bengala enquanto a xingava de velha aos gritos. Carmen tinha dois cachorrinhos que, toda vez que a cena era repetida, atacavam o ator para defender a sua dona. O ensaio parava na hora e ríamos muito... Outra feita ela me chamou numa sala contígua para me mostrar os troféus que ganhara ao longo da carreira: Eu tenho vários troféus gays. Este aqui, por exemplo, é o gato gay, que ganhei numa boate, revelou enquanto pegava uma escultura de um gato coberto de purpurina e com enormes cílios de plumas... Adorable! Por motivos alheios à nossa vontade, a peça não chegou a estrear, alguma burocracia da organização do festival frustrou nosso projeto. Tínhamos também, como o galã da montagem, o querido Bira Valdez que, apesar de ainda não ser veterano à época, nos deixou precocemente logo em seguida. A mocinha era Mirian Tessler, de quem nunca mais ouvi falar. Alguém de Porto Alegre saberia me dar notícias dela? Enfim, esse relato é uma singela homenagem a uma veterana atriz que já não está mais entre nós. Mas que merece ser lembrada para sempre... Ah! Quanto ao movimento/hashtag, eu não apenas quero veteranos na TV como também quero estar na TV, posto que já sou veterano... Um grande beijo, Carmen Silva, onde você estiver. Um dia estrearemos a nossa Ciumenta Velha in the sky with diamonds! Na foto, Carmen com um de seus adoráveis cãezinhos.

sábado, 12 de setembro de 2020

CAIO DE NOVO NO FRONT

Se fosse vivo, o escritor Caio Fernando Abreu completaria hoje 72 anos de idade. Conheci Caio quase no fim da vida dele, em 1991 (ele viria a falecer em 1996). Muito já contei aqui no blog das poucas (porém intensas) coisas que vivi com ele. Hoje cedo, quando acordei, fiquei pensando no quê eu poderia relatar no post que não soasse repetitivo. Lembrei então de um episódio que - creio - ainda é inédito por aqui. Quando morava no Rio de Janeiro trabalhando como assistente de direção de Luís Artur Nunes, eu vinha de vez em quando a São Paulo para ver os amigos e assistir a espetáculos de teatro. Numa dessas vezes encontrei com Caio e, depois de bebermos em um bar e passarmos um tempo no apartamento dele da rua Haddok Lobo, fomos assistir ao espetáculo Tudo de Novo no Front, de Aimar Labaki, em uma boate da rua Brigadeiro Luís Antônio. Acho que até já citei esse fato aqui antes, mas não me detive a contar os detalhes. Quando estávamos dando um tempo chez Caio, nosso amigo Ivan Mattos, que morava com ele na ocasião, chegou em casa com os convites nos chamando para ir com ele conferir a peça. Ao chegarmos no local da apresentação percebi, lendo o programa do espetáulo, que um dos integrantes do elenco era um rapaz gaúcho que eu conhecera quando fui integrante do júri do Festival de Teatro de Pelotas. A peça era uma espécie de instalação performática na qual cada um dos personagens circulava pelo espaço interagindo com os espectadores. Quando esse menino de Pelotas veio interagir conosco, ficamos o tempo inteiro tentando desconcentrá-lo, no intuito de fazê-lo sair do personagem. E Ivan completava, se referindo a mim: Ele te conhece de Pelotas, não precisa fazer personagem conosco... Lembro que nos divertimos muito e depois que o espetáculo acabou fomos tomar uns drinks no Ritz (Já o Ritz, e isso aconteceu em 1992). O que eu não sabia e agora sei é que grande parte dos integrantes do elenco daquela peça hoje são meus amigos! Destaco três: Agnes Zuliani, Carlos Fariello e Lili Maniero. Isso aconteceu em um tempo em que a gente andava a pé pela cidade a altas horas da noite. Ah! E não se fotografava quase nada... Sempre que conto histórias destes tempos para pessoas mais jovens, elas invariavelmente me perguntam: Você tem alguma foto desse dia? E respondo: Não, infelizmente não tenho. Naqueles tempos andávamos muito ocupados em viver as coisas; logo, sobrava muito pouco tempo para fotografá-las... Feliz aniversário, Caio querido. Onde você estiver, in the sky with diamonds! Ilustra o post a foto de Caio que roubei do painel de uma peça do Clube de Cultura em Porto Alegre nos anos oitenta.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

LINA FALA

Que bom que o mês de setembro chegou. Para mim setembro é um mês que traz bons augúrios, a perspectiva de renovação, as flores, a primavera, a proximidade das festas de fim de ano... O feriado da independência fazia a segunda-feira parecer um domingo. O calor, impensável nessa época do ano, fazia o inverno parecer verão. Lina, minha gata, estirada sobre as pedras frias do chão, olhava incrédula para a piscina do prédio, cheia de incautos condôminos que se aglomeravam sem máscaras de molho nas suspeitas águas. De tempos em tempos ela me encarava como a me perguntar: O cloro imuniza as pessoas do vírus? E emitia um miado longo, cheio de nuances de entonação, como se conversasse comigo na língua dos gatos. Quando cansei dessa incomunicabilidade, olhei firme nos olhos dela e perguntei: -Por que você não fala comigo na minha língua? Assim talvez eu pudesse saciar a sua curiosidade. Quase caí para trás quando escutei do nada: -Que gente sem noção! - Oi? Quem disse isso? -Eu, ora. Você não pediu para que eu falasse com você na sua língua? A sua língua, que eu saiba, é o português. Ou estou errada? -Não, Lina, pelo amor de Deus, você está certíssima, respondi ainda incrédulo. E ela prosseguiu: -Ando observando que vocês humanos tem sérias dificuldades de se relacionar com os problemas. De viver em comunidade. De pensar no coletivo. Sim, sim, concordei com um gesto de cabeça. E ela: -Aquele dia que vocês me levaram para passear de carro fiquei observando enquanto passávamos pelo Minhocão: Vocês constroem lindos jardins verticais nas fachadas dos prédios e deixam eles morrerem por falta de manutenção! Qual o sentido disso? Vi pessoas andando nas ruas com as máscaras no queixo. Ou com o nariz para fora. De que isso serve em tempos de pandemia? Engoli em seco pois, apesar de Lina estar falando a minha língua, eu sinceramente não tinha respostas para dar a ela. Depois de andar até a cozinha e comer um pouco de ração, ela voltou, parou bem na minha frente e mandou essa: -Quando assisto tevê junto com vocês, não pensem que não me dou conta dos absurdos que vejo. Dos políticos equivocados que vocês elegem para governá-los. De como vocês tratam a natureza. De como se matam uns aos outros em nome de Deus. Vocês devem ter um deus muito cruel. Se ele está, como dizem, acima de tudo e deixa isso tudo acontecer... E, se espreguiçando devagar, subiu na mesa e se aninhou sobre a capa do laptop onde adormeceu sem mais palavras. Fiquei atônito olhando as famílias na piscina. Percebi que entravam na água sem antes tomar a ducha. E a tarde de domingo, digo, segunda, findou como se nada estivesse acontecendo. Como se lá fora não houvesse uma pandemia. Como se aqui dentro uma gata não tivesse falado comigo...