quarta-feira, 27 de junho de 2018

CONTO À BEIRA MAR

I
-Meu filho, será que você poderia me ajudar com essas sacolas? Preciso pegar aquele táxi que está parado do outro lado da rua.
Minha vizinha é uma senhora idosa que mora sozinha e perdeu recentemente a única companhia que tinha, seu cachorrinho. Ajudei-a de pronto e assim que o táxi partiu levando minha amiga fiquei pensando em como seria a minha vida quando eu estivesse com a idade dela e sem ninguém para cuidar de mim. No dia seguinte, seu filho bateu à minha porta. Ele estava angustiado e parecia escolher cada uma das palavras que pronunciava. Na verdade, ele queria saber se eu poderia acompanhar sua mãe numa viagem ao litoral. Ele havia reservado uma semana num hotel em Ilhabela, para que ela se distraísse e superasse a perda do cachorrinho. A primeira coisa que pensei, e isso durou um átimo de segundo, foi: Eu teria alguém que me quebrasse esse galho? Achei que tinha muito tempo antes de me preocupar com isso e, sem pensar muito, respondi que sim, que poderia. Depois que ele se foi fiquei com a sensação de que tinha tomado a decisão acertada. Pensei: Eu sou sozinho, ela também. Adoro a sua companhia. Quem sabe no futuro também terei um jovem que adore a minha? No fim da semana passei em seu apartamento para apanhá-la e partimos rumo ao litoral...
II
O lugar onde nos hospedamos era agradabilíssimo. Chamava - se Hotel Pelicano. Ficava a poucos passos da praia, era só atravessar a rua e já se estava com os pés na areia. Toda a fachada do prédio era composta de sacadas. Ficamos em um amplo apartamento, composto de uma sala grande com mesa de jantar, banheiro e dois quartos com sacada de frente para o mar. Além de apreciar a companhia da minha amiga eu ainda teria uma sacada de frente para o mar só para mim. Ah, e com direito a uma rede estendida nela. Todos os dias acordávamos cedo, fazíamos uma pequena caminhada à beira mar, tomávamos um pouco de sol e almoçávamos. Depois ela deitava e tirava uma soneca. Era quando eu aproveitava para escrever. À tardinha, após ela tomar seu banho, eu lia um pouco para ela, jantávamos e ela ia se deitar. Aí eu me entregava ao meu mundinho particular. Minha sacada se transformava em uma espécie de cápsula, isolada do mundo externo, onde eu vivia a minha vida. Lia, escrevia, bebia, ouvia música nos fones de ouvido, tirava fotografias do mar, dos passantes, enfim, dava asas à minha imaginação...
III
Pois na última noite antes de voltarmos para casa eu havia bebido um pouco a mais e, como não conseguisse ler nem escrever, fiquei sentado numa das cadeiras apreciando as marolas que o vento fazia na água do mar. Percebi então que algo estranho acontecia sob a superfície das águas. Era como se uma luz tivesse sido acesa e se movimentasse lentamente dentro do mar. Foi quando aconteceu:
IV
Um ser iluminado saiu do fundo do mar. Emergiu reluzindo sua luz furta-cor. Primeiro a cabeça, depois o pescoço - que era longo - o tronco e os membros. Era um pouco maior do que um ser humano normal. Assim como andou sobre as águas desde o ponto onde aparecera até a areia da praia, andou também pelo ar numa diagonal ascendente em direção à minha sacada. Quando dei por mim ele já estava sentado ao meu lado. Sua luz, agora mais tênue, marcava presença sem ofuscar. Uma espécie de luminária de canto, uma luz indireta. Um abajur. Às vezes lilás... Fiquei me perguntando o que aquela criatura iridescente estaria fazendo ali, ao meu lado, iluminando minha sacada com sua doce luz colorida. Teria sido eu escolhido? E, caso tivesse sido, para quê? Ou seria ele uma cyber morte que veio, envolta em luz de led, buscar minha vizinha que jazia, digo dormia, no quarto ao lado? Fiquei nessas indagações até que adormeci sem me dar conta. Acordei quando o primeiro raio de sol apontou na direção do meu rosto. Olhei imediatamente para a cadeira ao lado. Ele não estava mais ali. Mas eu ainda era capaz de sentir sua presença iluminada, sua energia pulsando ao meu lado, espalhando tranquilidade. Como ainda sou capaz de sentir até hoje...

quinta-feira, 14 de junho de 2018

CONTO POSTAL

Meu caro amigo,
Não sei quem você é nem onde está. Não sei ao menos se você existe de fato. Mas de repente senti uma vontade incontrolável de escrever uma carta para um amigo distante. E resolvi fazê-lo aqui, via internet. Como quem joga ao mar uma garrafa com uma mensagem, na esperança de que ela vá dar a alguma praia e que alguém a encontre e a leia... Por aqui tudo bem. Sem grandes novidades. Tenho levado uma vida tranquila e agradável, malgrado as turbulências que sacodem o mundo lá fora. Fora da minha casa, eu quero dizer. Mais especificamente, da minha vida. Desenvolvi uma espécie de blindagem que me permite seguir existindo em meio ao caos em que tudo parece estar imerso. Dito assim pode soar egoísta. E digamos que seja um pouco, mesmo. Mas o que é um pequeno ato de egoísmo frente à crueldade humana? A falta de escrúpulos, a intolerância, a ganância e a exploração do próximo? Sim, sigo levando a minha vida em paz. Espero que o mesmo ocorra com você. Onde quer que você esteja...
Às vezes, para passar o tempo quando já estou cansado de ler ou de escrever, assisto a programas de variedades na televisão. Dia desses, enquanto trocava de canal, vi uma garota super alternativa, descolada, vegana, sustentável e outras mumunhas mais, que ensinava, em um canal de tv a cabo, como fazer um mojito "super diferente". Você acredita que não havia nenhum ingrediente do mojito na receita que ela mostrou? Se você não sabe, o que eu duvido muito, pois imagino que você viva fora do país e viaje bastante, mojito é um drink feito com rum, hortelã, limão, açúcar e água com gás. No lugar do rum, a garota colocou cachaça. No lugar da hortelã, poejo. O limão foi substituído por laranja. Não colocou açúcar e acrescentou chá de hibisco. Ou seja: Nossa jovem apresentadora & bartender não colocou nenhum ingrediente da receita original. Ah! Já esquecia: Água com gás ela colocou. Mas água com gás está longe de ser o ingrediente definidor de um mojito, você há de concordar. Então fiquei me perguntando: Já que a pessoa é tão criativa, por que raios não inventa um nome novo para o seu incrível drink? Posto que mojito, inequivocamente, não é...
Não sei porque senti vontade de escrever isso aqui na carta. Mas imagino que esteja tentando, mesmo que inconscientemente e de maneira indireta, dar a você uma espécie de trailer do que ando vendo e vivendo. Se é que você existe e, supondo que exista, esteja interessado... Espero que esteja tudo bem com você. Ou eu deveria dizer vocês? Será que você encontrou alguém com quem dividir a sua interessante vida internacional? Se isso de fato ocorreu saiba que fico muito feliz por você. Ou melhor, por vocês. Pois mesmo não conhecendo a pessoa pela qual você se apaixonou e com a qual decidiu dividir a sua vida, sinto que gosto dela só de saber que o faz feliz. No mais, sigo tentando aprender a tocar piano. Ou melhor, eu sei tocar piano. O que quiz dizer é que sigo tentando me transformar em um pianista. O duro é que cada vez tenho menos tempo para isso. A vida está passando a cada dia mais depressa. E o fim parece estar cada dia mais próximo...
Desculpe se não consegui escrever uma carta bela e inspiradora, cheia de boas notícias e grandes novidades. Mas, pelo que me lembro do tempo em que escrevia cartas, era mais ou menos assim que funcionava: A gente dizia como estava, dava um panorama geral do presente, contava algumas coisas banais, uma novidade se tivesse, perguntava como o interlocutor estava, desejava coisas boas para ele e sua família e se despedia esperando resposta. Acho que cumpri meu objetivo. Ah! Já ia esquecendo: Minha gata pariu uma ninhada de seis gatinhos e resolvi ficar com todos. Pelo menos a casa vai ficar cheia e mais animada... Bem, paro por aqui. Fique bem, fiquem bem. Espero que recebam essa carta. E, se possível, que a respondam. Um grande beijo e um grande abraço,
Do seu amigo distante.
PS - A Marieta manda um beijo para os seus. Um beijo na família, na Cecilia, nas crianças. O Francis aproveita pra também mandar lembranças a todo o pessoal. Adeus...

quinta-feira, 7 de junho de 2018

ALUCINAÇÕES PARCIAIS

Tive de ir ao posto da Polícia Federal que fica no Shopping Eldorado para renovar meu passaporte. Ou melhor, para fazer meu passaporte pois, segundo a própria Polícia Federal, passaporte não se renova. Aproveitando que estava perto, resolvi ir andando até o Instituto Tomie Ohtake para visitar a exposição Alucinações Parciais. Essa interessante mostra, feita em parceria com o Centre Pompidou de Paris, reúne obras de pintores modernistas europeus e brasileiros da primeira metade do século vinte. Dez artistas europeus e dez brasileiros, mais especificamente. A sala tem formato de arena, de modo que se pode admirar todas as obras ao mesmo tempo, se este for o desejo do visitante. Lembra bastante a sala oval do Musée de l'Orangerie, onde estão expostas as famosas Ninphéas, de Claude Monet, em Paris. Elas aparecem no filme Meia Noite em Paris, de Woody Allen. Alguém se lembra? Aqui na nossa arena estão dispostos de Henri Matisse a Fernand Léger, de Anita Malfatti a Maria Martins. Claro que tudo isso só fez aumentar ainda mais a minha abstinência de Paris. Lá se vão já três anos que não a visito. E as obras que vieram de lá me fizeram sentir ainda mais saudade da cidade como um todo e do Centre Pompidou especificamente. Ou Beaubourg, como é carinhosamente chamado. Eu adoro ir ao Beaubourg. Sempre que estou em Paris vou várias vezes visitá-lo. Não apenas o centro cultural em si, mas os seus arredores cheios de bistrôs, bares, cafés, lojas e ruazinhas cheias de charme... Nosso Instituto Tomie Ohtake não deixa de ser um pouco parecido, posto que como lá reúne exposições, teatro, café, restaurante, livraria e toda sorte de atividades culturais. Fiquei bastante feliz com a minha visita a esta exposição. Revi obras que adoro e pude apreciar outras tantas pela primeira vez. Amei de paixão O Atirador de Arco, de Vicente do Rego Monteiro, que não conhecia. Revi emocionado o Arlequim, de Picasso. Tarsila do Amaral está presente com A Feira e é sempre bom revê-la. Em uma vitrine estão expostos documentos, livros, cartas, programas de exposições e fotografias. Foi lá que encontrei e não resisti fotografar: Uma foto de Salvador Dali com Coco Chanel feita na famosa maison da estilista na Rue Cambon... Há também uma edição do Manifesto Antropófago, segundo o qual " só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente". Isso fica bastante claro quando se observa essa exposição. Até porque Tarsila do Amaral, uma das artistas brasileiras da mostra, foi aluna de Fernand Léger, mestre francês que também faz parte dessas Alucinações Parciais. Fecha-se o ciclo. E, para encerrar citando nossos modernistas antropófagos: Tupy or not tupy, that is the question.
A exposição encerra no próximo domingo. Corre lá que ainda dá tempo. E é grátis!
Nas fotos, Mademoiselle Chanel e Monsieur Dali batem aquele papinho cult e a impactante simetria do Atirador de Arco, de Vicente do Rego Monteiro.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

BALADA MATINAL

Tenho acordado cada dia mais cedo. Dormido mais cedo. Bebido menos. Saído menos à noite. A chegada dos dias mais frios me anima muito e pelas nove da manhã já estou em plena academia começando meu treino diário. Tudo nessa época do ano me anima e me inspira. Só um pequeno detalhe (nem tão pequeno assim, como verão) atrapalha essa harmonia outonal: A trilha sonora da academia. Além da música ser ruim, ela está sempre em alto volume. Nada me irrita mais de manhã cedo do que música de balada. Aliás, poucas coisas me irritam mais do que música de balada seja a hora que for. Quem foi que inventou que esse tipo de música anima as pessoas para treinar? E quando, além da música ambiente que domina a academia inteira, toca ao mesmo tempo a música da sala onde as pessoas fazem aulas de danças tão bizarras que nem saberia nominar? Fica uma miscelânea sonora insuportável que, pela cara das pessoas, parece só a mim incomodar... Já cansei de pedir, reclamar, sugerir em pesquisas sobre a academia: Pelo menos durante a manhã seria mais agradável ouvir um jazz, uma bossa, uma mpb que fosse. Nada. Nunca teve o menor efeito em nenhuma das academias que já frequentei. Eu devo ser uma pessoa muito esquisita... Falando em academia, a última que me aconteceu por lá essa semana foi um rapaz que se aproximou de mim e perguntou: Posso revezar com o senhor? Respirei fundo e assenti. Depois fiquei pensando: Ele tem razão. Eu devo ser mesmo esse estranho senhor que não suporta música de balada pela manhã. Aliás, em horário algum...
Na foto, o estranho senhor Roberto faz pose em frente ao espelho da academia.