terça-feira, 25 de abril de 2023

SESSENTA OUTONOS

Pois é, sessentei. Quem diria! Não gosto de contar meus anos em primaveras, como habitualmente se faz. Nasci no mês de abril, em pleno outono. Então eu conto assim: Acabo de completar sessenta outonos... E com a cabeça na lua! Rsrsrs… É claro que, como bom taurino, também tenho os pés plantados no chão. Apesar da minha aparente cabeça avoada, tenho uma boa conexão com a realidade. Só que a realidade por vezes me esmaga. Aliás, quase sempre. Não me sinto adulto o suficiente para encará-la. Então preciso de válvulas de escape, um certo lirismo, devaneios, loucuras. Vou enfeitando a vida com literatura, teatro, cinema, música e álcool. A procurar fazer do mundo um lugar melhor para viver… A cada década da minha existência lembro de meu pai, que no dia em que fiz dez anos me deu de presente um relógio- o primeiro que ganhei - e me disse que eu estava subindo o primeiro degrau da minha vida. Chego, portanto, ao sexto degrau. Com a sensação de que do terceiro pra cá tenho subido muito rápido! O primeiro e o segundo demoraram tanto a passar e agora passa tão depressa que tenho a impressão de que estou subindo de elevador… Chego aos sessenta ainda adolescente. Um idoso incapaz de lidar com as idiossincrasias do ser humano e com certa dificuldade de viver em sociedade. Hoje posso afirmar que vivo mais nos livros do que na vida real. Tenho consciência dos meus privilégios e sou grato por eles, que me permitem levar essa vida semi-real. Trago feridas emocionais deixadas pelo bullying que sofri na infância e adolescência. Sim, havia isso, apesar dos saudosistas da repressão insistirem que “naquele tempo não tinha essas frescuras”(Perdoai-os, pai, eles não sentiram na pele)… Aos trancos fui me inserindo nos avanços da tecnologia e na digitalização de tudo. (Confesso ainda resistir a alguns aplicativos, operações bancárias e compras pela internet). Com a diplomacia que me é natural tenho me mantido fora de polarizações. Ou acima, não sei… Driblando minha sufocante timidez consegui fazer sucesso nos palcos como comediante. (Até hoje não acredito). Isso tudo sem nunca ter feito uma única sessão de terapia. Imaginem eu, todo resolvido e trabalhado, que insuportável que seria! Mas vamos falar de coisa boa? O corpinho continua uma loucura! Rsrsrs. Apesar de toda essa pauta (para usar uma palavra da moda) sobre etarismo (outra), me sinto jovem e de bem com meu corpo. Aliás, acho que nunca estive melhor fisicamente do que agora. Claro, a pele laceia, o colágeno desaparece, a gravidade exerce com poder o seu efeito mas, com força-fé-e-endorfina a gente vai em frente... Não creio que já tenha vivido tudo o que me foi dado viver. Ainda espero muito dessa minha experiência terrestre. Embora sem maiores ilusões ou ingenuidades, a cabecinha voa longe quando imagino o que ainda está por vir. E é só coisa boa… Fasten your seat belts, que o sessentão-garoto promete turbulência! E assim que voltar da praia vou providenciar minha carteirinha de idoso e desfrutar dos privilégios que a minha nova idade me proporciona. E, para terminar falando em relógios, um dos que meu pai me deu foi o seu Omega de bolso, que ficou anos perdido no campo e, quando foi encontrado pelo capataz, foi só dar corda que voltou a funcionar imediatamente. Seu interior, de ouro e rubis, resistiu intacto à intempérie. E assim é a passagem do tempo em nossas vidas… Na foto, eu e meus sessenta outonos junto ao mar de Camburi.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

TCHAIKOWSKY, SÉC. XXI

São Paulo, década de vinte do século atual: Da janela do ônibus li o título estampado na fachada do cinema da Avenida Paulista: A Esposa de Tchaikowsky. Desde aquele instante comecei uma viagem sem volta. Soledade, década de setenta do século passado: Minha professora de piano me pede para escolher um compositor sobre o qual eu gostaria de fazer um trabalho de pesquisa. Respondo sem vacilar: Tchaikowsky. Piotr Ilitch Tchaikowsky. Talvez eu tenha escolhido mais pela sonoridade do nome, que me era totalmente exótica, do que pela obra em si, que então eu pouco conhecia além do Concerto Número 1 Para Piano e Orquestra. De onde eu tirei o material da pesquisa, a memória me trai. Deve ter sido de alguma enciclopédia, que era o que basicamente tínhamos à época. Ou de algum livro que a própria professora tenha me emprestado. O que ficou foi a decepção que tive. Que vida triste! Na minha santa ingenuidade de criança do interior, gente famosa tinha vidas maravilhosas, cheias de sucesso & glamur. Fiquei chocado com a aura de sofrimento com que era pintado o seu retrato. E o pior: Sua suposta homossexualidade. Isso, para mim, foi o mais difícil de entender. O que ainda era descrito como "homossexualismo". Um palavrão impronunciável. Como me arrependi de ter escolhido aquele compositor. Mas já era tarde, o trabalho precisava ser entregue. Que estrago faziam com a cabeça das crianças escondendo-lhes tudo e distorcendo tudo da pior maneira... Hoje a vontade de ir ao cinema foi incontrolável. Mesmo sabendo que era um filme um pouco mais longo do que as habituais duas horas de duração, que são o meu limite. A tristeza estava toda lá. Filmada, traduzida em imagens. O filme me levou para uma viagem sem volta, tal qual a que entrei em direção ao passado quando li o título da janela do ônibus. Uma viagem escura e linda. À luz de velas. Um delírio musical e poético. Por vezes erótico. Corpos nus, músculos e genitálias. A Rússia do final do século dezenove se impondo sobre os seus cidadãos. Ditando suas regras. Como, de certa forma, segue fazendo até hoje... Mas, como cinema é também magia e fantasia, encontrei momentos de prazer e alegria na vida do meu compositor escolhido: Ele bem que se divertia de vez em quando - entre uma sinfonia e outra - com suas amigas bibas e seus boys magia. À luz do século XXI isso não podia continuar sendo mantido em segredo. Foi um bom resgate de memória para mim. Uma verdadeira glasnost... Na foto, Piotr Ilich e sua esposa.