domingo, 26 de fevereiro de 2023

CLARICE FALA

Minha amiga Annelise Hachmann me mandou pelo whatsap a entrevista que Clarice Lispector concedeu a Marina Colassanti e Afonso Romano de Santana para os arquivos do MIS, Museu da Imagem e do Som. O arquivo traz a tradução da entrevista para o inglês, por escrito, e também o áudio original. É um áudio longo, sobretudo em tempos de internet. Tem mais de uma hora de duração. Mas vale cada segundo. Sou um fã de Clarice daqueles fanáticos, minha obsessão por ela beira a adição. Li tudo ou, pelo menos, quase tudo o que ela escreveu. E fora a obra, sempre a achei fascinante como pessoa. Clarice encarna a figura mítica da escritora misteriosa, o personagem romântico movido a inspiração que, quando não está escrevendo, cai em depressão até que alguma nova urgência a mova a se dedicar ao seu ofício. Amo e me identifico num grau absoluto. No áudio dessa entrevista, ela se revela humana e muito, muito falha. E ainda assim fascinante. O que todos achavam ser seu sotaque de russa, ela define como "língua presa mesmo". E explica que a cirurgia não valia a pena por ser um local muito úmido cuja cicatrização seria muito difícil. Perde o fio da meada o tempo todo e não procura disfarçar. Diz: O que eu estava falando? Hi, me perdi... Adorável. Hoje seria diagnosticada com déficit de atenção, no mínimo. Ela própria justifica esses lapsos dizendo já ter consultado um médico para saber se era normal pensar tantas coisas ao mesmo tempo. E o médico teria respondido: Sim, todo mundo pensa... A maior parte do que é dito na entrevista a gente já leu ou ouviu falar. Tudo faz parte da aura de mistério que envolve Clarice. Mas é fascinante ouvi-la tão despojada conversando com amigos. Pede Coca-Cola, pergunta se tem alguma coisa para comer, pois não tinha almoçado. Revela que não lê as traduções de seus livros para não se irritar, porque sabe que não foi ela que escreveu aquilo... Fiquei muito satisfeito e feliz de ter reservado parte da minha manhã de domingo para degustar essa pérola. Ou melhor, essa iguaria, pois pérola não se degusta. Que bom seria se tudo o que a gente recebesse por esses aplicativos de mensagem fossem coisas assim! Como o mundo seria melhor... Mas, enfim, o mundo não é assim tão bacana. E o que se compartilha nas redes passa longe, muito longe de algo desse quilate. Viva Clarice Lispector. Quem ainda não a leu, que o faça imediatamente. Quem ainda não a ouviu falar, que busque essa entrevista. Prometo maravilhas. Mas, como disse, é uma pérola. E pérolas são para poucos... Na foto, Clarice no Central Park, fotografada por Érico Veríssimo. Presente da minha amiga Mariana Veríssimo, neta de Érico.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

SCALP

Nos anos oitenta do século passado, em Porto Alegre, havia um salão de beleza chamado Scalp. Na verdade o Scalp era muito mais do que um salão de beleza. Era uma central de ideias, um núcleo de criatividade e inspiração. Todas as cabeças mais loucas, criativas, pensantes e/ou desbundadas passavam por lá. Nem que fosse só para dar um tapa no visual. Na liderança desse inusitado QG estava seu proprietário e mentor intelectual Walter Costa. O Walter era uma figura ímpar, de uma criatividade e de um humor sem iguais. Sempre antenado com o que estava acontecendo no mundo, de Nova Iorque a São Paulo, ele enchia de espanto e modernidade a "Carroça", alcunha que criou para denominar carinhosa e debochadamente a Capital Gaúcha. Walter criava tantas gírias e expressões que, para manter uma conversa com ele, a gente precisava dominar uma espécie de dialeto particular da sua tribo. Lembro especialmente de "lazanha", que ele usava para se referir a homem gostoso, "cheque", para definir qualquer coisa feia, mal feita, suja ou velha e "o auge", para qualquer coisa que abundasse. Como, por exemplo, o auge da cafonice... Entre outras criações suas, vale destacar o Prêmio Scalp, que laureava as figuras mais expressivas e criativas de diversas áreas da cultura e do entretenimento gaúchos. Na edição de 1988 fui agraciado com o prêmio de teatro pela minha montagem de Lisístrata. É o troféu que mais amo de todos os que ganhei. Não apenas pelo prêmio em si, mas pelo troféu, uma bela obra do artista Fiapo Barth. A cerimônia de entrega do Prêmio Scalp era um evento que movimentava a cidade e a cada ano era realizado em um local diferente. Os funcionários do Scalp eram um capítulo à parte. A começar pela recepção, capitaneada pelo ator Paulo Vicente, que já fazia a gente morrer de rir logo na entrada daquele templo do humor e da originalidade. Entre os cabeleireiros, impossível não lembrar do Claudinho. Ou Claudiona, como era mais conhecida. Dono da já antológica frase "cada um desce a escada do jeito que quer", que proferiu após despencar escada abaixo na entrada de uma boate da Carroça... Tanto Walter quanto Claudinho já nos deixaram há bastante tempo. Mas suas memórias permanecem vivas em todos nós que os conhecemos e convivemos com eles. E, por falar em memórias, Walter deixou um manuscrito com o projeto de uma autobiografia, já bem adiantado, com várias histórias interessantes e bem contadas. Alô biógrafos, documentaristas e pesquisadores em geral! Esse material inédito e interessantíssimo está disponível, se não me engano, com a Marjorie, que também era funcionária do Scalp. Não tenho o contato, mas na "Carroça" não deve ser difícil descobrir... Passei esses dias chuvosos de Carnaval em casa, remexendo guardados, ouvindo músicas e revendo antigas fotografias. E, entre outras coisas, imaginando o que o Walter estaria achando da caretice em que tudo se transformou depois da sua partida. Certamente diria que estamos vivendo "o auge da caretice"... Nas fotos, meu troféu by Fiapo Barth e Claudinho et moi no Ocidente.