terça-feira, 3 de maio de 2011





CONTO SOLITÁRIO
Morava sozinho em um prédio antigo do centro da cidade. Não gostava muito de sair. Às vezes ficava dias sem botar o pé pra fora de casa. Lia muito. Os livros, seus grandes companheiros. Gostava de ouvir música. Nessa hora, ele próprio era sua melhor companhia. Criava um clima para si: Luzes baixas, velas, abat-jours... Tinha discos de vinil. Gostava de deixá-los espalhados pelo chão da sala: Billie, Elis, Ella, Nina, Nana, Gal... Da janela, dava pra ver ao longe os morros que cercavam a cidade. Último andar, antigo arranha-céu. À noite uma profusão de luzes, letreiros, neons. Quando o sol começava a se por e as luzes iam pouco a pouco se acendendo, e o céu se colorindo em tons de fogo até escurecer, era impossível não beber. A cena pedia um drink. Vários: Drink, drank, drunk... Tinha gatos. Três. Ninguém é só vivendo com gatos. Um gato preenche uma casa. Imagine três. Gostava de fotografar. Viagens, amigos, lugares. Nos raros momentos em que saía do casulo, gostava de fazer bolos, cocadas e merengues com os quais presenteava os amigos. Vivera no exterior. Guardava lembranças de um amor vivido em terras distantes, que acabou mal, deixou feridas que o tempo cicatrizou e agora só restavam as boas lembranças. Sonhou ser alguém importante, que deixaria um legado para a história da humanidade, o tempo passou, esse sonho não se realizou, mas, tudo bem, ele tinha outros tantos que conseguiu realizar, já estava bom, podia fechar a porta do apartamento, baixar as luzes, abrir o vinho e ligar o aparelho de som sem culpa. Serge Gainsbourg: Je suis venu te dire que je m'en vais.O vinil rodaria no prato da vitrola até chegar o momento de virar o disco. Trocar de lado. Comprara um binóculo, com o qual observava moradores de prédios distantes. Um reallity show particular. Vidas a serem absorvidas, roubadas em pequenos flashes, fragmentos, frames. Às vezes assistia a videos no youtube, meu nome é Leona, a assassina vingativa, esse ano resolvi fazer algo diferente, e teve boatos de que eu ainda estava na pior... Um solitário numa cidade grande nunca está sozinho. Aliás, pensava, cidades grandes são imensas massas de seres solitários. Por falar nisso, gostava de sair sozinho para ir ao cinema, ao teatro, beber no balcão de algum bar, jantar em um restaurante simpático onde já conhecesse todos os funcionários e, ao chegar, sorrissem e lhe perguntassem: O de sempre? E então se sentar ao balcão e trocar palavras amigas com o bar man, fazê-lo rir um puco, em meio ao trabalho, que bom, eu gosto quando você vem... E assim os dias iam passando, as semanas, os meses, os anos. A vida se repetindo e se renovando. A solidão se povoando, ele crescendo, trocando, vivendo cada vez mais, mais depressa, da mesma forma, de maneiras inusitadas, fazendo viagens, transpondo oceanos, renovando vistos, escrevendo tudo em um blog, fazendo um certo sucesso, alternado com momentos de esquecimento, passando fins de semana na praia, nada como o mar para ampliar horizontes... Da janela do seu apartamento dava para ver ao longe os morros que cercam a cidade mas, fala a verdade, ele estava no centro de uma metrópole, qualquer perspectiva de horizonte mais aberto esbarrava em alguma antena de TV ou de telefonia. Vontade de escanear o passado, as lembranças, memórias distantes e postá-las no facebook. Para receber dezenas de comentários, curtidas, incessantes notificações. E convites de amizades. Essas, ok, tudo bem. Não invadiriam a sua adorada solidão. A solidão voluntária de habitante da grande cidade...

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