quinta-feira, 30 de dezembro de 2010


FICÇÕES
Essas ficções foram cometidas em outubro de 1991. Eu havia decidido voltar ao Brasil depois de ter morado um ano em Paris. E, antes de voltar, resolvi fazer uma viagem à Grécia, sonho que tinha desde criança. Quis publicá-las no blog, apesar de longas, por falarem de um momento de transição, de recomeço. Como o que estamos vivendo, de fim de ano e de década.
I
O homem está sentado na areia. Ele olha para o mar. Olha longe, lá onde se confundem os azuis. Ele pensa. Ora tanto cinza, ora tanto azul. E lembra que há muito tempo tudo parecia ser verde. Na sua memória havia muito a presença da cor verde. E era de fato qualquer coisa como pequenas cidades, dias longos, correntes de ar. Aos poucos, sentado na areia, os azuis já não se confundem. O homem percebe uma linha nítida, traçada entre o azul do mar e o liláz do céu que começa a avermelhar. A lembrança de uma música altera qualquer coisa e traz à memória as cores urbanas, os telhados de uma cidade, seus cheiros e seus boulevards. Mesmo tendo deixado essa cidade, não dava para guardar uma imagem somente agradável, algo como longas correntes de ar em pequenas cidades de dias longos. Havia subterrâneos, dias contados e um certo compromisso de recomeçar.
II
O homem está sentado em seu quarto. Ele olha para o espelho. Olha fundo, lá onde as marcas do seu rosto não se confundem. Toca a própria pele, em volta dos olhos, cabelos. Ele sente a presença do tempo, que passa e que transforma. Transforma coisas mas não altera realidades. A sua, por exemplo, de homem sozinho em frente ao espelho. Sem defezas e incapaz de maquiar o que já viveu. Em todo caso, ele pensa, um gel no cabelo pode ajudar. De gel no cabelo ele apaga a luz, fecha a porta do quarto e sai, com um certo compromisso de recomeçar.
III
O homem está sentado à mesa de um café. Ele olha para a porta. Olha através, lá onde se adivinha quem vai chegar. Ele tem a sensação de que tudo se repete. E não sabe quantas vezes já olhou através de quantas portas. Quantas pessoas vieram, quantas deixaram de vir. Essa era só mais uma espera. Consumida em cigarros, bebida e olhares através. Todas as pessoas foram embora. O homem está sozinho e tonto dentro do café. A porta parece não abrir mais. E, de fato, não abre. Só quando o homem desiste da espera, paga a conta e sai do café, com um certo compromisso de recomeçar.
IV
O homem está sentado na sala do apartamento. Ele olha para o telefone. O telefone preto que está sobre a mesa a um canto da sala do apartamento. Ele olha triste, cansado do silêncio preto do telefone. Cotidiano como um homem triste que espera, que olha pro mar, põe gel no cabelo e lembra os telhados de uma cidade. Sozinho como um homem que se olha no espelho marcado pelo tempo. A janela está aberta. Por ela entra uma brisa amena. Por ela sai uma música romântica e triste. Que fala de uma paixão impossível. O homem olha para o telefone. Olha longe, fundo, através e triste. Desiste mais uma vez. Sai batendo a porta do apartamento, sem nenhuma vontade de recomeçar. Quando entra no elevador, o telefone toca. Mas ele não escuta. E, mesmo que escutasse, não daria tempo de ir até o térreo e voltar para atender.
V
O homem está sentado à proa de um grande navio. Ao sol. Ele dorme e sonha. No sonho ele é um homem velho, que sobe uma montanha com um homem jovem pela mão. Ele está tentando falar da beleza para o homem jovem, mas esse não pode entendê-lo. O homem pensa na verdadeira beleza, universal e absoluta. A beleza idealizada e perpetuada pelos gregos, esculpida pelos escultores, gravada pelos gravadores. Vem-lhe à mente a beleza do cinema italiano, francês, do moderno cinema espanhol. Nada. Ele fala às pedras da montanha. No sonho, o homem jovem não pode conceber a beleza. E o homem velho escuta o eco que repete ao longe a palavra beleza, beleza, beleza. O homem acorda com uma certa angústia e se pergunta se vale a pena recomeçar.
VI
O homem está sentado à mesa de um café. A mesa de sempre, no café de sempre. Ele olha para a porta. Olha através, como de costume. Todas as pessoas foram embora, o homem está sozinho e tonto dentro do café. A porta se abre e entra um homem vestindo um jeans surrado. O homem de jeans surrado se aproxima do homem e para em frente a ele. Pega-o pelo braço com uma violência breve. O homem não está entendendo nada quando a porta se abre novamente e entra um terceiro homem de paletó preto com flores na mão. Era quem o homem estava esperando. O homem de jeans surrado beija a boca do homem. O outro, de paletó preto e de boca aberta, deixa as flores vermelhas caírem no chão branco e preto do café. Sem entender nada também. Termina o beijo seco de violência contida. Os três homens se olham breves. Rápidos. O homem de paletó preto sai, batendo a porta do café. O de jenas surrado o segue violento. O homem, atônito, olha para a porta e para as flores vermelhas, paralisado. Cai de joelhos no chão branco e preto do café e chora sobre as flores vermelhas. É convidado a sair soluçando e sem a menor vontade de recomeçar.
VII
O homem está sentado. Ele nada espera. Apenas bebe. Uísque. Ele não olha pra nada. Apenas sonha. Tem os olhos tristes, está de partida. Fuma cigarros light. Pensa em telhados, pontes, esquinas. Cafés e aeroportos. Mais uma vez vai deixar alguém, uma cidade, uma série de coisas. Está sozinho e não quer a companhia dos vizinhos, que batem à porta e lhe oferecem chá. Ele só quer mais gelo. Que lhe dêem o seu gelo e se vão. O uísque desce apertado sem gelo. Agora começa a descer melhor. O homem está mais bêbado. A sala gira. O ano passado gira na sua cabeça. Nada para o ano que vem. Ele não pensa em recomeçar. Mas é disso que se trata o seu momento. De coisas que começam e que terminam.

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