quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

PRETÉRITO IMPERFEITO

Já falei aqui no blog de uma teoria que tenho: Quando o presente não está bom ou, pelo menos, minimamente satisfatório em relação às expectativas que tenho da vida, das pessoas e de mim mesmo, me volto para o passado. Não de maneira saudosista, mas como uma forma de entender como foi que cheguei até onde cheguei e o quanto já havia no meu "eu passado" da pessoa que me tornei hoje. Isso normalmente envolve remexer guardados. E essa busca invariavelmente me revela surpresas. Como o texto que transcrevo a seguir, escrito por mim em maio de 1984, quando tinha vinte e um anos de idade. Vou colocar entre aspas, para diferenciá-lo bem do meu estilo atual: "Na sala do pequeno apartamento, a um canto onde a estreita faixa de sol que aquecia o ambiente se limitava, acomodado sobre uma cadeira, lançava, sobre as folhas do caderno, com a caneta de pena, palavras, pequenos versos, estrofes novas, tentando estruturar, sob a forma de poesia, o que sentia em relação a si e às constantes ondas de paixão e arrebatamentos poéticos de que era tomado. Difícil encontrar as palavras adequadas, que não traiam os verdadeiros intuitos e que transmitam, a quem por ventura as ler, ou mesmo a quem as escreve, a descrição exata da realidade ou da fantasia do pensamento em questão. A visão interior das coisas, dos sentimentos que vez ou outra se nutre por determinada pessoa ou situação é rica e amparada por uma série de recursos que a imaginação possui e que cabe a cada um desvendá-los, uma vez que a restrita linguagem das palavras carrega em si o risco do mal-entendido, dos enganos, da não-transmissão das reais intenções... Ao fundo, vindo do quarto, o som do violino modulava o poema, que variava as intenções do conteúdo, da forma, conforme o tipo de sensação que a música causava ao poeta, ou melhor, à pessoa que procurava, através da arte das palavras escritas, dar sentido àquele instante daquela tarde daquele dia daquela sua vida... No quarto do apartamento, junto à janela que dava para a estreita rua contornada por jacarandás em flor que, plantados lado a lado junto ao meio fio das duas calçadas, a envolviam como em um túnel roxo e verde de flores e folhas, tocava seu violino enquanto observava, absorto, musicalmente contemplativo, as nuances, os degradês, as diversas variações de cores que a música lhe sugeria. Tentava, então, de cada nota extrair uma cor, de cada cor fazer brotar novas notas, dando um colorido especial à sua arte que, inventiva, livremente unia cores e sons, formando uma aquarela musical na qual havia, para cada emoção, um tom especial de cor e de som... As palavras que eram ocasionalmente pronunciadas na sala, em voz alta, sugeriam, no quarto, novas harmonias, melodias inusitadas, frases musicais que uniam o geométrico espaço do pequeno apartamento num só e grande momento artístico: O da sala escrevia ao som da música que o do quarto extraía das cores e das próprias palavras vindas dele, dos dois, seus pensamentos, suas artes... Quando, depois de uma dessas tardes, ou noites, ou manhãs, madrugadas, conversavam sobre suas músicas e poesias, era com incontida emoção e felicidade que constatavam a beleza de sua relação, sua convivência poético-musical que os aproximava sempre mais, desvendando, a cada dia, novas afinidades..." Mantive tudo como estava no original. Mesmo os excessos, redundâncias, as frases excessivamente longas e o uso exagerado da vírgula. Afinal, como diz o título do post, o passado é imperfeito... Na foto, a vista do meu quarto em Porto Alegre, desenhada por mim em maio de 1982, dois anos antes de escrever o texto aqui transcrito.

2 comentários:

  1. Aos 21 você já era erudito, um romântico imperfeito, como ainda o é até hoje.

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    1. Ai, Odilon! Romântico, sim. Ainda sou. Mas acho que já estou um pouco mais perfeito. Ou, para citar Raimundos, complicado e perfeitinho rsrsrs...

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