quarta-feira, 29 de julho de 2015

TURNÊ

(Fragmento de Futuro Livro)
Quando minha mãe foi hospitalizada eu estava viajando há dois anos com a turnê de um espetáculo de sucesso. Recebi uma ligação da minha irmã e fiquei completamente transtornado. Afinal de contas, minha mãe não tinha nenhum problema de saúde, estava ótima na última vez que falara comigo. Ao me ver chorando debruçado na janela do meu quarto de hotel, a diretora do espetáculo me disse gentilmente que, se eu quisesse largar tudo e ir ao encontro da minha mãe, eu poderia fazê-lo. Eu agradeci e disse que não, que não precisava. Eu acreditava que minha mãe ia ficar boa e logo tudo voltaria ao normal. Uma semana depois eu já estava em minha casa e tomava o café da manhã quando o telefone tocou e era uma amiga e conterrânea com quem eu não falava há muito tempo. Tudo bem com você, ela me perguntou. Tudo, respondi. Estou ligando para saber se você precisa de ajuda. Ajuda com o quê, perguntei sem entender direito. Com o que aconteceu com sua mãe, respondeu ela. O que aconteceu com minha mãe, indaguei já meio que prevendo a resposta. Silêncio do outro lado da linha. Minha mãe morreu, perguntei. Desculpa, achei que você já soubesse. Fui atropelado por aquele peso das grandes verdades inquestionáveis que nos imobiliza e silencia. Minha amiga, completamente sem jeito por ter sido a portadora da má notícia, cuidou de ver passagem aérea, me buscar em casa e me levar catatônico ao aeroporto. Cheguei a tempo de velar as últimas horas de minha mãe e depositá-la no túmulo. A turnê do meu espetáculo seguia suas apresentações. Naquela noite, sem mim. Mas, no dia seguinte, como convém a todo artista, lá estava eu sobre o palco fazendo rir uma plateia que sequer imaginava como eu estava por dentro. Eu, que a vida inteira só tive amigo boleteiro, maconheiro, marginal. As mulheres tudo puta ou sapatão, os homens tudo viado, gente que só queria saber de ficar até altas horas da noite na rua bebendo, cantando, tocando violão e se chapando, eu que desde a mais tenra idade só andava com gente mais velha, olha eu ali sem saber o que fazer nem o que pensar. Eu tinha, apesar dos maus hábitos e das más companhias, dado certo. Tinha me tornado uma boa pessoa, um cidadão honesto e cumpridor dos meus deveres. E, ainda por cima, estava fazendo um certo sucesso. A morte de alguém que amamos tem o poder de gerar essa reflexão sobre tudo o que vivemos. A vida passa como um filme e traz a sensação de que podemos ser o próximo a partir. Aquele ano não estava sendo nada fácil. Meses antes a produtora do espetáculo falecera depois de um longo período enferma, complicações no fígado que acabaram gerando um transplante que gerou uma rejeição. Uma morte tola e fora de hora, prematura, a pessoa no auge da produtividade, boa e lúcida como poucas e de uma sensatez sempre bem vinda. Mas Deus insiste em se precipitar no afã de ter consigo gente que ainda tem muito pra dar por aqui... Tanto sucesso profissional misturado a tanta dor. Às vezes ficava difícil administrar. Entrar em cena para fazer os outros rirem quando você só sente vontade de chorar. O velho clichê do palhaço triste. Fazer o quê, the show must go on! Outro clichê brabo... E a turnê seguia, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Eu estava finalmente conhecendo um pouco desse país de dimensões continentais. Com perdas e ganhos, com baixas e novas aquisições, seguíamos levando riso & reflexão a quem estivesse interessado. E, devo dizer, não eram poucos.
Na foto, meu personagem Betina Botox saindo de cena.

Um comentário:

  1. O que mais gosto desse singelo e honesto post é o texto inicial (Fragmento de Futuro Livro). Só espero que o futuro chegue logo.

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