segunda-feira, 31 de março de 2025

TEATRO DOS BONS

Ontem fui assistir pela segunda vez a O Antipássaro, espetáculo solo do ator Nilton Bicudo, com textos da poeta Orides Fontela e direção de Elias Andreato. Nesta nova temporada no Teatro Ágora há uma pianista executando ao vivo a belíssima trilha sonora. O que já era bom ficou ainda melhor. Niltinho exala talento pelos poros. Sua entrega ao texto e ao teatro em si é extremamente tocante. Nunca fui muito fã de poesia, ainda mais no teatro. Mas ele se apropria com tamanha força das palavras de Orides que elas nem soam como poemas, mas como grandes verdades que tocam a plateia e calam fundo nos que se permitem aprecia-las. Além de dizer os poemas, Nilton também dá voz à própria Orides com falas extraídas de entrevistas que ela deu para a televisão em programas como o de Jô Soares, por exemplo. É quando o ator acrescenta delicadas doses de humor ao lirismo do espetáculo. Nisso, diga-se, ele é mestre. Vide a sua inesquecível performance em Myrna Sou Eu, outro solo em que dava vida ao pseudônimo feminino de Nelson Rodrigues. Esse Antipássaro é uma pequena joia ornada das mais belas filigranas. A noite de domingo e o mês de março foram encerrados de maneira brilhante... Na quinta-feira fui assistir a Não Me Entrego, Não, espetáculo do ator Othon Bastos, que impressiona pela vitalidade e lucidez aos noventa e um anos de idade. Desde que entra em cena e é imediatamente aplaudido até o final de quase duas horas de peça, ele dá um show de carisma e talento puro. Com roteiro e direção de Flávio Marinho, o espetáculo revisita a longa e profícua carreira deste grande ator dos palcos, da televisão e do cinema. Uma aula de cultura brasileira. E a agradável sensação de que a passagem do tempo a tudo melhora... Tão bom quanto fazer teatro é assistir a teatro dos bons, como esses dois inesquecíveis espetáculos que tive o prazer de ter ido essa semana. Longa vida a O Antipássaro e a Não Me Entrego, Não! Nas fotos, Niltinho e Othon bastos recebem os merecidíssimos aplausos.

domingo, 16 de março de 2025

ELIS 80

Hoje é domingo e eu estou bebendo vinho branco e ouvindo Elis. Até aí, nada de novo. Quem me conhece sabe que beber vinho branco e ouvir Elis são duas das coisas que mais faço na vida. O que há de especial é que, se ainda estivesse viva, Elis completaria oitenta anos amanhã. Como eu normalmente não bebo às segundas-feiras, adiantei a comemoração para hoje… O engraçado é que tudo hoje é diferente. Ouvir Elis, comemorar seu aniversário e, até mesmo, beber vinho branco. Costumava comemorar essa efeméride com minha amiga Anne, no apartamento dela, na época em que éramos vizinhos na rua Garibaldi, em Porto Alegre, na década de oitenta do século passado. Hoje estou comemorando sozinho no meu apartamento da Alameda Franca, em São Paulo, onde já moro há 29 anos; e onde, diga-se de passagem, seria vizinho de Elis, que morava há poucas quadras daqui, na rua Doutor Mello Alves... Hoje ouço Elis com muito mais prazer. O prazer de fruir das sutilezas e nuances da sua interpretação, dos arranjos, das letras das canções. Aliás, isso seria um post à parte, a qualidade e beleza das letras das canções que se perderam com o tempo por aqui. Ela teria um trabalho pesado para garimpar algo que prestasse para gravar hoje em dia. Pérolas como os versos de João Bosco e Aldir Blanc na canção Cabaret: “No drama sufocado em cada rosto, a lama de não ser o que se quis” ela não encontraria por mais fundo que mergulhasse… Beber vinho branco também é uma outra experiência hoje em dia. A começar pela qualidade do vinho que bebíamos na época e a do que bebo hoje em dia. Junte-se a isso os anos vividos, as experiências adquiridas, as viagens, as memórias, misture bem, deixe descansar e aprecie com moderação (Não muita)… Depois de ter ouvido vários de seus álbuns, ter se emocionado, se divertido e ter tido mais uma vez renovada a certeza de que Elis era a maior cantora do Brasil, feche os olhos e grite bem alto (nem que seja para dentro ou contra uma almofada): Viva Elis Reginaaaaa!!!! Nas fotos, Elis fotografada por mim no show Saudade do Brasil, no Canecão, e pela lente da genial fotógrafa Vânia Toledo que, infelizmente, também já nos deixou, para a capa do novo disco que não chegou a lançar.

segunda-feira, 10 de março de 2025

ADELAIDE BACALHAU

Domingo pela manhã, enquanto preparava o almoço, me deparei com uma postagem no Instagram que trazia uma sugestão para você criar o seu nome de drag. Bastaria juntar o nome da sua avó com a última coisa que você comeu. Minha avó materna, a única que conheci, se chamava Adelaide. Eu estava preparando um bacalhau e, como tinha provado diversos bocados dele enquanto cozinhava, não deu outra: Meu nome drag virou Adelaide Bacalhau. Gostei tanto que fiquei rindo sozinho diante do fogão. Achei meio parecido com nome de chacrete (millennials, dêem um Google) ou de vedete do teatro rebolado (idem, idem)… Depois fiquei pensando em como seria a minha drag queen, como se definiria a sua personalidade. Acho que ela não seria muito dada nem muito simpática. Seria bem exigente, um pouco chata, mesmo. Metida. Blasé. Não toleraria erros de português. Escritos ou falados. Não teria muita paciência para as trends e memes da internet. Já estaria de saco cheio de todos esses jargões relacionados a Fernanda Torres: nós vamos sorrir, sorriam, totalmente não sei o quê, a vida presta (esse, aliás, até a própria já não deve aguentar mais)… Em peças de teatro e em filmes que considerasse chatos, Adelaide Bacalhau certamente se levantaria e sairia na metade. Ou antes, até... Se ela fosse visitar essa exposição em homenagem a Ney Matogrosso que o MIS está exibindo, sairia desencantada com a pobreza e a feiúra. Imagina, um artista do quilate de Ney receber essa homenagem chinfrim! Parece que a gente está no backstage de um estúdio de televisão, tudo colado em tapadeiras, um monte de panos transparentes atrapalhando a visão! Mas, deixa quieto... Dedé Baca (vamos ser íntimos) também não aceitaria esse remake da novela Vale Tudo que a Globo está a requentar. Principalmente Humberto Carrão, com aquela cara de militante, fazendo o papel do milionário Afonso Roitman… Adelaide Bacalhau seria também muito rica. Econômica e culturalmente. Dedicaria boa parte do seu tempo à leitura de clássicos da literatura brasileira e universal. O que lhe renderia vasto vocabulário, que ela usaria só para humilhar as incultas e iletradas. Cinéfila que só, assistiria a muitos, muitos filmes e também a séries de streaming. Vestiria Courrèges da cabeça aos pés. De vez em quando Paco Rabane ou Pucci. Ah! Só frequentaria eventos sociais como convidada, jamais se submeteria a fazer recepção ou animação de festas! Coisa mais cafona... Pensando bem, Adelaide Bacalhau, minha persona drag, seria muito parecida comigo. Na verdade, eu mesmo. Só que com peruca, cílios postiços, salto alto e língua afiada… Nas fotos, a eterna chacrete Rita Cadillac e o modelito Courrèges vintage preferido de Adelaide.

terça-feira, 4 de março de 2025

MARÇO SOLAR

Abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer! O mês de março entrou solar e superaquecido, desmentindo a canção de Tom Jobim que fala das águas de março fechando o verão. Entrou, também, supercarnavalizado. Eu, que já tinha jurado nunca mais participar da folia, no domingo pela manhã acabei me jogando no vintage e singelo bloco Somos Todos Carmen, do meu amigo Rafael Leidens, que presta homenagem à eterna Carmen Miranda, símbolo do sucesso do Brasil no exterior. Fazer o quê? Minha carne é de carnaval, meu coração é igual e tudo e talz. Fui fantasiado de Gal Tropical, homenageando nossa outra diva, Gal Costa, provando que, como diz o nome do bloco, Somos Todos Carmen mesmo. Me diverti horrores, revi amigos queridos, dancei pencas, só não fiquei mais tempo porque o salto da sandália quase me matou. Da próxima vez vou inventar uma fantasia com tênis... E nem tudo é folia no carnaval de São Paulo. No sábado à tarde fomos assistir ao impressionante espetáculo Sagração, da Cia. Deborah Colker, acompanhada pela OSESP, que executou ao vivo a trilha sonora na não menos impressionante Sala São Paulo. Inspirado em A Sagração da Primavera, de Stravinsky, o espetáculo mescla trechos da composição original com sonoridades e cânticos indígenas brasileiros. Emocinante, para dizer o mínimo. Deborah segue se reinventando e se superando sempre. À noite ainda fomos no esquenta pré-desfile chez mon ami Edson Cordeiro, para ver o mago dos pincéis Cabral realizar a maquiagem do anfitrão, que desfilou ao lado do marido Oliver na Estrela do Terceiro Milênio, escola de samba paulistana cujo enredo prestou homenagem à comunidade LGBTQIAP+ (me perdoem se faltou alguma letra na sigla)... E no domingo também teve filme brasileiro premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro! Merecidíssimo reconhecimento da academia de cinema a Ainda Estou Aqui, obra irretocável de Walter Salles. Já estou louco de vontade de ir ao cinema rever... Para fechar a folia momesca com chave de ouro, hoje, terça-feira gorda (vamos dizer mardi gras, para não ferir suscetibilidades) tivemos almoço mexicano chez mon ami Tude Bastos. Tude e seu marido Peter receberam os amigos com animados drinks e tacos e guacamoles regados a muita música e boas conversas até o entardecer do último dia de carnaval. Voltei para casa cheio de esperanças e ilusões, mas certo de que todo carnaval tem seu fim... Para encerrar, uma daquelas coisas que chegam pra gente na internet e que não tem como não compartilhar: Perguntada se tamanho para ela é documento e se prefere um pequeno brincalhão ou um grandão bobão, uma travesti responde: Prefiro um que pague! Pagou já me ganhou, eu me entrego, eu me dedico, eu dou a vida! Rsrsrs... É a mais pura verdade, queridos leitores. Sabedoria popular, muito melhor do que auto-ajuda. Na vida a gente precisa se entregar, se dedicar, dar a própria vida. É claro que a recompensa nunca será a mesma para todos, por maior que seja o esforço. Tem gente que persegue um sonho a vida inteira e não consegue realizá-lo. Outros, por muito menos, conseguem tudo. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, sem paixão não dá nem para chupar um picolé, não é verdade? Vamos seguir tentando. A gente não precisa mirar no Oscar, evidentemente. Mas há tantas outras coisas legais para conquistar! Fica a dica para esse ano que finalmente começa por aqui. Bom mês de março a todos! Na foto, eu encarnando Gal no bloco Somos Todos Carmen.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

FRAGMENTOS

No bloco de notas do meu celular tenho uma pasta chamada: Fragmentos para o blog. Lá coloco frases, ideias, trechos para serem desenvolvidos em futuros posts. Percebi que alguns deles já estavam lá há tempos e ainda não tinham sido desenvolvidos. Transcrevo-os aqui, como fragmentos mesmo, para dar uma ideia de como um post às vezes começa... -Paris é uma cidade muito linda. Quem não a conhece ou, pelo menos, não a conhece muito bem, talvez não saiba como ela se desenha. É mais ou menos assim: Existe a Paris entre muros, que é a cidade preservada tal como era no seu auge, e a Paris moderna dos bairros que a cercam, os banlieus. O que tenho a dizer em sua defesa é que a cidade é sempre linda. Mesmo quando mais ao sul, Paris se parece com São Paulo. É o caso de Vanves. Se você sai no terraço de um prédio nesse bairo da capital francesa você jura que está em São Paulo. Já fui muito mal interpretado quando disse isso a um francês morador do bairro. Mas, como eu amo Paris e amo São Paulo, acho as duas cidades lindas. E compará-las, para mim, sempre será um elogio... -Muito difícil falar de O Quarto ao Lado, o novo filme de Almodóvar, sem dar spoiler. Bem, é muito difícil falar dele. Não o digeri ainda, estou sob o impacto do filme. Qualquer pessoa que tenha mais de quarenta anos já viveu um grande amor, já teve desilusões e, certamente, já perdeu pessoas amadas. É também nessa fase, digamos “o outono da vida”, que a gente se conscientiza mais da inevitabilidade da morte; e tem a percepção de que ela está cada vez mais próxima. Ainda assim, parece que nunca estaremos preparados para lidar com ela. Decidir, então, sobre ela, menos ainda. Ousar programá-la, escolher dia, hora e local nem pensar. Envolve crenças religiosas, leis, tabus, preconceitos e uma série de impedimentos. Levanto aqui tudo isso porque também me incluo no rol das pessoas que tem dificuldade de lidar com a morte. Sofri muito com todas as pessoas amadas que já perdi e sofro só de pensar que uma hora qualquer irei me perder também. Pois é disso que o filme trata. A personagem de Tilda Swinton está com câncer terminal e, exausta de sofrer com o tratamento, decide morrer. Ao contrário da Suíça, que permite a eutanásia assistida, nos Estados Unidos, onde se passa a história, ela é considerada crime. A personagem convida uma amiga que não via há anos para ser sua acompanhante nos dias finais da sua existência. Ah, e consegue a pílula letal na deep web, de maneira totalmente ilícita. Juro que eu não queria ser a pobre dessa amiga... -Nesse momento, em que tanto se discute a inteligência artificial, resolvi falar do seu oposto: A burrice natural. Diferente do seu antônimo, ela não precisa ser criada ou recriada por programas de computador; nasce com a pessoa e, através dela, se espalha contagiando toda a manada. Digo, a galera. E, dessa forma, sempre que algo aponta para o desenvolvimento, para a expansão, para a evolução ou para a transcendência, a burrice natural naturalmente (com o perdão da redundância) se expressa de maneira opositora... -Bateu legal? Bateu gostoso? Perguntou o senhor idoso ao seu amigo, idoso também como todos os ocupantes da mesa do bar. Ele se referia a um shot de cachaça que o outro acabara de sorver. Sim, respondeu o amigo. Ainda bem, porque na nossa idade o prazer é esse: A cachaça, a comida, os amigos. E prosseguiu: Quando meu pai perdeu o meu irmão ele ficou muito triste. Quando perdeu a minha irmã, ele desacreditou completamente de Deus. Quando a gente perguntava pra ele de Deus, ele respondia: Se Deus existe, se existe algum deus, ele coloca a gente aqui no mundo e diz: Se vira! Posso te fazer uma pergunta? Os seus filhos são exatamente o que você queria que eles fossem? Nessa hora o meu drink bateu e perdi a continuação da conversa... -O ônibus demorou horrores para passar. Fiquei fritando no sol escaldante de fim de verão. Ainda bem que pelo menos meu rostinho e minha calva estavam protegidos pelos óculos escuros, o chapéu e o protetor solar. É claro que quando ele finalmente chegou retirei o chapéu para que os demais percebessem minha idade avançada - evidenciada pela brancura dos poucos cabelos - e me deixassem passar na frente... Por hoje é só! Acho que faz juz ao título, não? Nas fotos, anoitecer em Paris e as divas de Alomdóvar em O Quarto ao Lado.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

1978

No poster fixado na parede branca do apartamento, Mafalda - a personagem de Quino - aponta para o cacetete de um policial e diz: Esta é a borracha de apagar ideologias; à direita do poster, completando a composição, uma samambaia de metro pende do teto até quase ao chão, no qual repousam almofadões sobre o carpete que reveste a sala do apartamento. No toca-discos, um LP de Chico Buarque gira cantando “meu caro amigo eu não pretendo provocar nem atiçar suas saudades, mas acontece que não posso me furtar a lhe contar as novidades” antecedendo um de Milton Nascimento que aguarda na pilha de discos para ser rodado... O colégio novo da capital me assusta. Ando cabisbaixo pelos corredores, tentando não chamar atenção. Os meninos do segundo e do terceiro ano são cruéis, terríveis, não poupam ninguém. Alguns da minha sala também são. Morro de medo de ser obrigado a jogar futebol nas aulas de educação física. Felizmente estão oferecendo judô como opção. Assim me inscrevo e chego até a faixa amarela. Ano que vem não sei mais... Faço teste e sou aprovado para participar do grupo de teatro do colégio, cujos ensaios são à noite. Eu morava no Bom Fim e o colégio era no centro. Eu ia e voltava a pé para os ensaios, sozinho, tarde da noite, com apenas quinze anos de idade. Sendo que aparentava muito menos, quase uma criança de doze. Por incrível que pareça aos olhos de hoje em dia, a noite me acolhia. Entre os esquisitos, malucos e desviados do teatro eu era apenas mais um. O problema era o dia, cheio da crueldade dos intolerantes e preconceituosos que me rotulavam (para dizer o mínimo)… O bom eram os amigos, a convivência com minhas irmãs, nossos pais que vinham do interior nos visitar seguidamente, os feriados que eu ia passar com eles em Soledade, as férias de julho e as de verão. Os shows no teatro Leopoldina, as peças de teatro (poucas, quase todas eram proibidas para menores de dezoito anos), meu professor de literatura que nos levava para assistir aos espetáculos e depois bater um papo com os artistas. Foi assim que tive a oportunidade de ver Bibi Ferreira em Gota d’Água, Fernanda Montenegro em É e Lilian Lemmertz em Patética, entre outras… Meu primeiro porre em uma festinha de amigos em Soledade. A bebida se chamava Fogo Paulista (algo profético, não?) e depois de encher a cara e passar mal me levaram pra casa e me entregaram para os meus pais. Lembro que caí de joelhos no tapete da sala, minha mãe me ergueu e não lembro mais nada… “Você sonhava que ia ser melhor depois. Você queria ser o grande herói das estradas. Tudo o que você queria ser. Sem medo”! Minha primeira paixão por um amigo. Até então só me apaixonara por meninas. E agora, como é que faz? Pode isso? Meu Deus do céu, me ajuda. Acho que prefiro morrer… Meu pai me levou no alfaiate para encomendar meu primeiro terno, para eu usar na formatura da minha irmã. Completo: calça, paletó e colete. Como o evento seria no verão, escolhi um linho beje, para usar com camisa branca. Ninguém, nem mesmo meu pai, conseguiu me convencer a usar gravata. Deixei a gola da camisa aberta, bem ao estilo de John Travolta no filme Embalos de Sábado à Noite… À tarde, as aulas de piano eram na Rua da Praia, também no centro da cidade. Sempre dava para aproveitar e comer um cachorro-quente molho e mostarda na Confeitaria Princesa ou uma bomba royal na Banca 40 do Mercado Público. (E de vez em quando comprar um bombom de cereja com licor na Kopenhagen)… O filme Chica da Silva, de Cacá Diegues, tinha mexido muito comigo um ano antes, quando ainda morava no interior. Vi que estava em cartaz no cinema de um centro comercial (o equivalente aos shoppings de hoje). Fui até lá e roubei o cartaz, que estava colado apenas com fita adesiva, em uma das vitrines do local. Mandei fazer um pôster que ficou por anos no meu quarto de Porto Alegre e depois transferi para o quarto de Soledade. Zezé Motta foi por anos meu “crush”… Eu já sabia que não cabia mais na pequena cidade do interior. Mas Porto Alegre ainda era grande demais para mim. Mais do que grande, era assustadora. Nada que o tempo, senhor de toda sabedoria, não se encarregasse de transformar: em poucos anos a Porto Alegre da minha juventude também ficaria pequena para mim e eu iria me lançar em voos ainda mais altos pelo Brasil e o mundo. Gabeira ainda nem tinha voltado do exílio com a tanga de crochê, o que iria ajudar muito nas mudanças que se seguiriam… Parece que foi ontem. Mas já faz quase cinquenta anos… Na foto, a família toda embecada para a festa de formatura da Raquél.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

FEVEREIRO CHOO CHOO

O mês de fevereiro entrou com tudo, depois de extenso janeiro quente & chuvoso, mais a cara de São Paulo impossível... O choo choo do título refere-se à expressão cantada por Caetano Veloso na canção Língua (Do álbum Velô, de 1984) e exalta a exímia e rapidíssima dicção de Carmen Miranda, nosso símbolo oficial do sucesso brasileiro no exterior na primeira metade do século passado. Atropelado por uma intoxicação alimentar que me prostrou por quase uma semana, acabei sendo impedido de comparecer à estreia da peça Gertrude, Alice e Picasso, na qual minha amiga Patricia Vilela dá vida a Alice B. Toklas, a famosa companheira da não menos famosa escritora Gertrude Stein. Falta que tratarei de reparar já no próximo fim de semana... Felizmente me recuperei a tempo de conferir o impecável show de Edson Cordeiro fazendo homenagem à nossa bombshell-mor Carmen Miranda. O repertório de Carmen caiu como uma luva na voz e na performance de Edson e ele pôs a plateia da Casa de Francisa lotada pra pular da primeira à última canção desse já histórico e inesquecível show que precisa ser urgentemente reprisado nas melhores casas do ramo. Edinho cantou acompanhado dos virtuosos e talentosíssimos integrantes do Trio Gato com Fome, que caiu como a outra mão da luva. Ah, e vestido pelo Crochê do Japa, do meu amado Weidysan, que criou um bolero preto ornado de bananas amarelas que deixou tudo ainda mais lúdico e divertido. Há tempos não me divertia tanto em um show (mesmo sem poder beber uma gota de álcool)... Ainda na velô choo choo, tenho lido muito nesse verão. Graças ao já citado aqui Biblion, a biblioteca virtual do Estado de São Paulo. Se eu já era um leitor contumaz, agora leio o tempo todo, até mesmo na bicicleta ergométrica enquanto pratico meu cárdio na academia. Gosto muito da ideia de ser fisgado por um aplicativo. Logo eu, o último dos analógicos que nem banco virtual ou aplicativo de táxi tem. O bom é que essa modernidade tem me apresentado a antiguidades que eu ainda desconhecia, como o romance brasileiro Bom Crioulo, do naturalista Adolfo Caminha. Apesar de ter sido lançado ainda no século dezenove (1895), a obra é impressionantemente moderna, tratando da homossexualidade de maneira explícita ao retratar o romance do ex-escravo Amaro com o jovem e belo grumete Aleixo. Perto de Adolfo Caminha escritores como Tennessee Williams e André Gide (que são bem posteriores, já século vinte) parecem tias velhas enrustidas... E por falar em símbolo oficial do sucesso brasileiro no exterior, Fernana Torres atualiza essa ideia no melhor estilo, não só encantando a todos com sua belíssima performance no filme Ainda Estou Aqui, mas também arrancando risadas dos entrevistadores e do público em todos os talk shows estrangeiros por onde passa. Vi na internet alguém comentar que é muito difícil ser engraçado em outro idioma. Ora, é muito difícil ser engraçado, ponto. Quem é engraçado consegue sê-lo em qualquer idioma, vide Patrícia Wood et moi, quando morávamos em Paris, e enchíamos de sorrisos a Rue des Écouffes - onde morávamos no Marais - com nosso humor brasileiro totalmente adpté au français. Engraçado também tem sido ver as pessoas na internet tentando desesperadamente pegar carona no sucesso de Fernanda. Seja postando fotos com ela de trabalhos que fizeram juntos, tietando simplesmente a atriz ou simulando uma intimidade que a gente sabe que não existe... E como fevereiro é um mês mais curto do que os outros, preciso correr para não perder mais nada além do que já perdi na minha convalescença gastro-intestinal (nunca pensei que escreveria essa palavra). Hoje pela manhã me senti indescritivelmente feliz ao tomar meu prosaico café com leite acompanhado de pão com manteiga e frios, como faço sempre e estive privado durante uma semana: Para terminar citando nosso novo sucesso internacional, tive a certeza de que "a vida presta"... Bom fevereiro a todos! Nas fotos, Edson Cordeiro canta Carmen Miranda vestido pelo Crochê do Japa, Patrícia Vilela em versão lesbian chic de Alice B. Toklas, Fernanda Torres mostra as pernas para o mundo e Carmen em si, a precursora da coisa toda.