segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

1978

No poster fixado na parede branca do apartamento, Mafalda - a personagem de Quino - aponta para o cacetete de um policial e diz: Esta é a borracha de apagar ideologias; à direita do poster, completando a composição, uma samambaia de metro pende do teto até quase ao chão, no qual repousam almofadões sobre o carpete que reveste a sala do apartamento. No toca-discos, um LP de Chico Buarque gira cantando “meu caro amigo eu não pretendo provocar nem atiçar suas saudades, mas acontece que não posso me furtar a lhe contar as novidades” antecedendo um de Milton Nascimento que aguarda na pilha de discos para ser rodado... O colégio novo da capital me assusta. Ando cabisbaixo pelos corredores, tentando não chamar atenção. Os meninos do segundo e do terceiro ano são cruéis, terríveis, não poupam ninguém. Alguns da minha sala também são. Morro de medo de ser obrigado a jogar futebol nas aulas de educação física. Felizmente estão oferecendo judô como opção. Assim me inscrevo e chego até a faixa amarela. Ano que vem não sei mais... Faço teste e sou aprovado para participar do grupo de teatro do colégio, cujos ensaios são à noite. Eu morava no Bom Fim e o colégio era no centro. Eu ia e voltava a pé para os ensaios, sozinho, tarde da noite, com apenas quinze anos de idade. Sendo que aparentava muito menos, quase uma criança de doze. Por incrível que pareça aos olhos de hoje em dia, a noite me acolhia. Entre os esquisitos, malucos e desviados do teatro eu era apenas mais um. O problema era o dia, cheio da crueldade dos intolerantes e preconceituosos que me rotulavam (para dizer o mínimo)… O bom eram os amigos, a convivência com minhas irmãs, nossos pais que vinham do interior nos visitar seguidamente, os feriados que eu ia passar com eles em Soledade, as férias de julho e as de verão. Os shows no teatro Leopoldina, as peças de teatro (poucas, quase todas eram proibidas para menores de dezoito anos), meu professor de literatura que nos levava para assistir aos espetáculos e depois bater um papo com os artistas. Foi assim que tive a oportunidade de ver Bibi Ferreira em Gota d’Água, Fernanda Montenegro em É e Lilian Lemmertz em Patética, entre outras… Meu primeiro porre em uma festinha de amigos em Soledade. A bebida se chamava Fogo Paulista (algo profético, não?) e depois de encher a cara e passar mal me levaram pra casa e me entregaram para os meus pais. Lembro que caí de joelhos no tapete da sala, minha mãe me ergueu e não lembro mais nada… “Você sonhava que ia ser melhor depois. Você queria ser o grande herói das estradas. Tudo o que você queria ser. Sem medo”! Minha primeira paixão por um amigo. Até então só me apaixonara por meninas. E agora, como é que faz? Pode isso? Meu Deus do céu, me ajuda. Acho que prefiro morrer… Meu pai me levou no alfaiate para encomendar meu primeiro terno, para eu usar na formatura da minha irmã. Completo: calça, paletó e colete. Como o evento seria no verão, escolhi um linho beje, para usar com camisa branca. Ninguém, nem mesmo meu pai, conseguiu me convencer a usar gravata. Deixei a gola da camisa aberta, bem ao estilo de John Travolta no filme Embalos de Sábado à Noite… À tarde, as aulas de piano eram na Rua da Praia, também no centro da cidade. Sempre dava para aproveitar e comer um cachorro-quente molho e mostarda na Confeitaria Princesa ou uma bomba royal na Banca 40 do Mercado Público. (E de vez em quando comprar um bombom de cereja com licor na Kopenhagen)… O filme Chica da Silva, de Cacá Diegues, tinha mexido muito comigo um ano antes, quando ainda morava no interior. Vi que estava em cartaz no cinema de um centro comercial (o equivalente aos shoppings de hoje). Fui até lá e roubei o cartaz, que estava colado apenas com fita adesiva, em uma das vitrines do local. Mandei fazer um pôster que ficou por anos no meu quarto de Porto Alegre e depois transferi para o quarto de Soledade. Zezé Motta foi por anos meu “crush”… Eu já sabia que não cabia mais na pequena cidade do interior. Mas Porto Alegre ainda era grande demais para mim. Mais do que grande, era assustadora. Nada que o tempo, senhor de toda sabedoria, não se encarregasse de transformar: em poucos anos a Porto Alegre da minha juventude também ficaria pequena para mim e eu iria me lançar em voos ainda mais altos pelo Brasil e o mundo. Gabeira ainda nem tinha voltado do exílio com a tanga de crochê, o que iria ajudar muito nas mudanças que se seguiriam… Parece que foi ontem. Mas já faz quase cinquenta anos… Na foto, a família toda embecada para a festa de formatura da Raquél.

2 comentários:

  1. Lindo e emocionante. E a surpresa em saber teu pai tão mais alto que todos.

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    1. kkkkk... Odilon, o lado baixinho da família é o da minha mãe. Na foto eu tinha apenas 15 aninhos, depois ainda cresci, passei todas as irmãs e quase alcancei meu pai! rsrsrs..

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