sábado, 26 de abril de 2025

LENA IN HEAVEN

O ano de 1987 começou com uma perspectiva muito excitante para mim: Estrear um espetáculo em São Paulo. Eu tinha vinte e três anos, estava cursando a faculdade de teatro em Porto Alegre e, se já não fosse o bastante, era um dos integrantes do elenco do Grupo Tear, sob a regência de Maria Helena Lopes. Eu, que conhecera São Paulo na infância - quando vim visitar meus tios e primos na companhia de meus avós - agora me encantava com a Sampa cantada por Caetano Veloso. Nas noites efervescentes do Bexiga meu walkman tocava Talking Heads. Heaven era minha canção preferida: Todos estão tentando chegar no bar. O bar se chama paraíso. No paraíso a banda toca minha música favorita… Nosso espetáculo se chamava Império da Cobiça. Tinha sido criado a partir de improvisações inspiradas pelo livro Memórias do Fogo, de Eduardo Galeano. Um processo longo e por vezes doloroso. Mas sempre estimulante e encantador. Errávamos muito. Mas quando acertávamos era um deleite. E a Lena, como a chamávamos carinhosamente, invariavelmente nos conduzia ao deleite. Era o mínimo que ela buscava… De São Paulo fomos para o Rio de Janeiro. Foi quando mais me aproximei dela. Fizemos coisas juntos, passeamos, demos entrevistas, fomos ao cinema. Lembro de ter assistido com ela ao filme Veludo Azul, de David Lynch, num cinema em Botafogo. Lena me contou que fizera uma edição própria do filme: Primeiro assistiu da metade para o fim e, na sessão seguinte, do início ao meio. Só ela… Uma das minhas maiores alegrias era fazê-la rir das minhas imitações das pessoas que conhecíamos ao longo da turnê. Era quando eu sentia que a agradava de verdade. Em cena eu sabia que às vezes deixava a desejar, iniciante que era… A primeira coisa que aprendi com ela foi a escutar. Acho que foi no primeiro dia de aula na faculdade. Nunca esqueci. Levei para a vida. (Imagino o que ela diria hoje nesse mundo em que todos só falam sem ouvir nada)… Outro ensinamento que nunca esqueci: Você tem medo, mas faz. Sempre que tremo na base antes de entrar em cena ou fazer o que for preciso na vida, lembro dessas palavras e não deixo o medo me paralisar. Sigo em frente (todo cagado, mas sigo)… Antunes Filho, outro grande gênio do teatro que já se foi, a reverenciava. Era no teatro dele, no Sesc Consolação, que Lena apresentava suas encenações em São Paulo. Antunes dizia que ela não era diretora, de tão boa que era ele a considerava diretor. E ela, feminista, batia pé na defesa de seu gênero: Sou diretora! Estou na praia, no litoral norte de São Paulo, onde vim passar meu aniversário. Foi no dia dos meus anos que eu soube, por uma rede social, que ela faleceu. Desde então uma sucessão de imagens, cenas, lembranças, me invadiram. Lena risonha e feliz montada na minha Vespa para tirarmos uma fotografia juntos na frente do teatro. Lena brindando seu aniversário numa festa surpresa que fizemos para ela na sala de ensaio. Lena nos mostrando Erté em um livro de arte. Lena no meu apartamento da rua Garibaldi para assistirmos a um filme no meu vídeo cassete. Lena me fazendo repetir incontáveis vezes a frase “quero o sangue e o reino” nos ensaios da peça já estreada; acho que nunca consegui dizer aquilo do jeito que ela queria (me perdoa, por favor, mesmo in heaven)… Memórias, não apenas do fogo, mas da terra, da água e do ar… Obrigado, Maria Helena Lopes, por tudo o que você fez pelo teatro gaúcho e nacional. Obrigado, especialmente, por tudo o que você fez por mim. Por ter me olhado com carinho e atenção; por ter tido paciência com minha juventude e despreparo; por ter assistido às minhas direções (ela que não assistia a quase nada e, quando assistia, quase nunca gostava); por ter me inspirado, me aberto os olhos e, sobretudo, por ter me estendido a mão… Meu walkman não existe mais. Choro enquanto escrevo esse post ouvindo Talking Heads à beira-mar nos fones sem fio do celular… “Há, no paraíso, uma festa e todo mundo está lá. Todos partirão ao mesmo tempo. Quando essa festa acabar, ela começará de novo. Não será diferente. Será exatamente igual. O paraíso é um lugar onde nada nunca acontece”… Tenho certeza que você vai sacudir o paraíso e fazer muita coisa acontecer. Siga na luz! Na foto, Lena e Sergio preparam o brinde na festa suspresa que fizemos para ela na sala de ensaio.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

ÚLTIMO SONHO

Fim de domingo com Almodóvar… Não me refiro a seus filmes, mas à leitura da obra O Último Sonho, uma coletânea de doze contos do cineasta espanhol. Sou fã de Pedro Almodóvar num grau meio difícil de mensurar, algo que beira a mais louca obsessão. Referindo-se a esse livro, ele diz ser o mais próximo que já chegou de uma autobiografia. Não há como não concordar, Almodóvar é quase sempre muito autobiográfico no que quer que faça. Mesmo quando não fala necessariamente de si mesmo: Pode ser da mãe, da Espanha, de uma cantora de boleros, de um livro que leu ou de algum filme a que assistiu. E eu, pela total identificação, quase sempre acabo acreditando que fala de mim. Como no conto Romance Ruim, no qual discorre sobre a vontade que tem de escrever um romance, ainda que não seja o romance ideal. Fala também da necessidade que sente de estar com pessoas e conhece-las, o que também me reflete bastante. Eu tenho essa necessidade e espero nunca vir a perde-la. Assim como a vontade de sair, de ver coisas, viver coisas, descobrir coisas novas e me conhecer melhor através delas. Ou pelo menos, como cantou Rita Lee, saber que “enquanto estou vivo e cheio de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz”… No fim de semana que hoje se encerra estive com amigos queridos, assisti a espetáculos de teatro, comemorei com minha amiga Pilly Calvin, que há anos não encontrava, o seu aniversário. Saí da minha rotina de novo idoso, me sacudi, me testei, descobri limites e restrições. Nada que me impeça de ir em frente. Gosto muito da vida, de estar nela. Dia desses, visitando minha amiga e "ídola" Cida Moreira, que se recupera de uma lesão no braço, enquanto conversávamos cheguei à conclusão de que tenho (temos) uma conexão com a vida. Com o estar vivo. Acordar pela manhã e ser grato por estar ali. Pelo dia que começa. Pela luz do sol de outono que invade a janela. Isso. E muito, muito mais… Meu aniversário se aproxima e eu, taurino que só, me ponho a contar os dias e a comemorar antecipadamente. Que a nova idade que chega me dê mais vontade de estar vivo. Apesar de. Além de. Através de. E sobretudo…. Quando digo que não me refiro aos filmes, mas à leitura do livro, minto. Na semana que passou revi O Quarto ao Lado, que agora está disponível na Netflix. Mesmo sem o impacto da grande tela do cinema o filme mantém sua força. E muito do que escrevo agora também é fruto de te-lo revisto. Como podem perceber, Pedro Almodóvar me influencia sempre e de todas as maneiras… Bon avril à tous! Na foto, a capa de O Último Sonho.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

MACÁRIO

Volto aos posts relativos às minhas direções em teatro. Achei que já tinha escrito aqui sobre todas elas, mas me dei conta de que faltaram algumas… Meu trabalho de conclusão do curso de direção na faculdade de Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul foi uma adaptação do Macário, de Álvares de Azevedo, no segundo semestre de 1989. Eu já tinha feito muito sucesso com meu trabalho anterior, a Lisístrata de Aristófanes, que me rendeu os prêmios Açorianos e Sated de melhor diretor e o troféu Scalp de teatro. Decidi então fazer algo mais cult, low profile, para poucos mesmo. Apenas três apresentações, à meia-noite, no teatrinho do Dad, do qual retirei algumas poltronas para limitar ainda mais o número de espectadores. Para o papel título escalei o então iniciante Fernando Washburger, que despontava como promessa de jovem ator. No papel de Satã, o antagonista, a talentosíssima Lucia Serpa e, se desdobrando em todos os personagens femininos, a não menos talentosa Ciça Reckziegel. Explorando todo o espaço cênico e a plateia, minha encenação tinha marcações nada realistas. O que conferiu um certo ar expressionista/pós-moderno ao espetáculo. (Eu estava numa fase Gerald Thomas/Bob Wilson, buscando o teatro de imagens, mais experimental e menos popular, digamos assim). Muito dessa atmosfera devo creditar à incrível iluminação concebida pelo saudoso Hermes Mancilha. Com pouquíssimos refletores e uma criatividade sem limites, ele transformou em sonho tudo o que tocou. E em realidade tudo o que sonhei... A peça teve a participação de Guto Vilaverde, nu, em uma inusitada Pietá nos braços de Ciça Reckziegel. Marlene Goidanich se encarregou da preparação vocal e da belíssima sonoplastia. Meu professor orientador foi o querido Beto Ruas, de quem guardo lembranças de muita identificação e afeto. Minhas colegas Nora, Ilana e Lucia me ajudaram na produção e Nora se encarregou dos figurinos. Infelizmente não tenho nenhum registro do espetáculo. Quem viu, viu. Antonio Holfeldt fez uma inspirada crítica no jornal Correio do Povo, falando de Macário e da importância do DAD/UFRGS. Claudio Hemmann assistiu, assim como várias celebridades locais. A diretora Bia Lessa, que estava em cartaz na cidade, foi assistir e, depois da peça, disse que tinha achado o diretor “um gatinho”, o que me deixou lisonjeado rsrsrs… Gosto muito deste meu trabalho, como diretor é um dos meus preferidos. Uma pena que não tenha sido gravado nem fotografado. Mas, como tudo na vida é transitório, a própria vida inclusive, registro aqui como tentativa de preservar a memória dos meus espetáculos. Nas fotos, o programa do espetáculo; feito artesanalmente como quase tudo o que fazíamos à época; nosso teatro, inclusive.