Dia desses, pensando nas marcas que a vida deixa na gente, me deparei com uma cicatriz que tenho na perna e ela me fez viajar no tempo... Quando eu era pequeno, devia ter oito ou nove anos, subia correndo uma escada de casa quando tropecei e bati a canela direita na quina de um degrau. A pele subiu abrindo uma espécie de Grito de Munch na minha perna. A batida foi tão forte que meio que anestesiou o local, pois lembro que não sentia propriamente dor. Lembro também que apenas um fino filete de sangue corria da ferida. Mas eu chorava e gritava da mesma forma, tamanho foi o susto e o estrago que a queda causou. Quando minha mãe atendeu aos meus apelos e viu o que tinha acontecido, saiu porta afora aos berros, acenando e gritando para os carros que passavam em frente à minha casa. Um deles parou e nos levou ao hospital. Aqui minha memória faz um pequeno lapso. Não lembro de quem nos levou até lá, nem do trajeto, nem tampouco da chegada no hospital. Só lembro de já estar sendo atendido pelo Doutor Sidney... Dr. Sidney era o médico da família, compadre dos meus pais, que eram padrinhos de sua filha Fátima. Adoro essa cena e nunca, jamais, em tempo algum irei esquecê-la. Enquanto costurava minha perna, Dr. Sidney mantinha preso aos lábios um cigarro aceso. De vez em quando ele pegava o cigarro com uma das mãos para bater a cinza no cinzeiro e, aproveitando os lábios livres, dizia à minha mãe: Calma, comadre, vai ficar ótimo! Ótimo não ficou: Até hoje tenho uma espécie de sorriso gravado na canela como lembrança desse acidente. Mas vamos combinar que transformar o Grito de Munch em um smile não é pouca coisa... Tenho muita saudade desse tempo em que a gente conhecia os médicos e não tinha plano de saúde. As relações eram pessoais e não burocratizadas como são hoje. E ninguém adoecia ou morria porque o médico não usava luvas esterilizadas em um ambiente totalmente asséptico. Já estou com cinquenta e dois anos e nunca fui hospitalizado na vida. Todas as doenças que tive puderam ser tratadas em casa. Sem plano de saúde. E o smile na minha canela direita é a prova. São as tais marcas que a vida vai deixando e que contam a nossa história...
Na foto, Robertinho por volta dos oito ou nove.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
sábado, 19 de dezembro de 2015
BODAS DE PERFUME
Hoje meu blog está completando seis anos de existência. São as nossas bodas de perfume. Seis anos de casamento são chamados bodas de perfume ou de açúcar. Como não gosto de açúcar, escolhi perfume, que adoro. Me lembra o livro de Patrick Süskind, que amei. E o meu perfume propriamente dito, o Vetiver de Guerlain que adotei há anos. Sempre que ele está acabando, brinco que preciso ir a Paris comprar meu Vetiver... Agora vou fazer uma confissão aos leitores: Nunca pensei que o blog fosse durar tanto tempo. E o fato dele estar durando me deixa muito feliz. Primeiro porque não tenho a me-nor obrigação de fazê-lo. Faço por puro prazer. E segundo porque ele me realiza. Sim, através do blog eu realizo minha fantasia de ser escritor. Se ninguém ler, tanto faz. Está tudo aqui. Registrado. E um dia talvez, na posteridade, eu seja descoberto e lançado como um escritor de obra póstuma. Até que seria bacana. Mas bacana mesmo seria se isso acontecesse na atualidade, comigo vivo, para desfrutar a realização de mais um sonho... Sei que ando relapso, escrevendo pouco. E aqui aproveito para fazer mais uma confissão: Na verdade eu tenho é postado pouco. Escrever eu continuo escrevendo. Mas, por uma série de problemas de logística (sempre quis usar esse termo!), não tenho mesmo é podido postar com a regularidade de sempre. Mas esse problema já está sendo resolvido. Aproveito para agradecer a todos que me seguem e me leem e para pedir aos que só me leem que me sigam também! E que façam os comentários aqui no blog ao invés de fazê-los no facebook. Enfim, de qualquer maneira, muito obrigado a todos! Vamos nos falando por aqui. E longa vida ao blog!
Na foto, The Toilette of Venus, de François Boucher.
Na foto, The Toilette of Venus, de François Boucher.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
OUTROS TEMPOS
Sou garçom aqui nesse restaurante há mais de cinquenta anos. Comecei tinha vinte e cinco. Hoje eu sou o funcionário mais antigo da casa e não deixo derramar uma gota de cafezinho. Sou o rei da bandeja. Essa moçada nova de agora não está acostumada a trabalhar. Nem pra servir uma mesa eles prestam. Ficam olhando pras xícaras e copos, começam a tremer e derramam tudo! Eu canso de ensinar: Você olha na direção do seu objetivo. Ou seja, a mesa do cliente. Se ficar olhando pra xícara, derrama. Mas eles não aprendem nada, só reclamam do calor. Imagina, calor hoje em dia, com ar condicionado! Antigamente não tinha essa mamata. E a gente tinha que atender no salão de summer smooking . Hoje é essa moleza de atender só de camisa e gravata. Mas eles reclamam até da gravata. E o público, então? Ah, a clientela mudou muito. Gente de bermuda, de chinelos. Isso era impensável um tempo atrás. Os cavalheiros vinham de terno, gravata e chapéu. E, evidentemente, tiravam o chapéu ao adentrar o salão. Não era como hoje que a garotada entra de boné... Quando eu falo ninguém me entende. Outros tempos, meu camarada, outros tempos. Hoje em dia está tudo mudado.
E é um tal de bater foto, bater foto, bater foto. Não sei qual é a necessidade que as pessoas têm de tirar tanto retrato. Selfie, não é, que chamam agora? Até do prato eles tiram foto. Depois reclamam que está frio... Eu acho que as senhoras que vinham à tarde, para o chá, já faleceram. Ou nem tem mais coragem de sair de casa. Não se pode mais usar nem uma joia. Tão roubando até correntinha de ouro, que é uma coisa barata. Imagina uma joia de verdade, com brilhantes... E os cavalheiros que vinham tomar um scotch no fim da tarde também já devem ter partido pro andar de cima... Pelo menos os novos proprietários conservaram a decoração. Não colocaram telão de plasma. Não consigo entender a função de um televisor ligado em um restaurante. Quem quer assistir tevê que fique em casa! Esses espelhos até o teto, isso tudo veio da Bélgica, de navio. Mas agora ninguém mais dá valor. Quando o pianista toca standards do jazz tem gente que reclama! Decerto eles queriam que tocasse funk! É por isso que eu digo: Outros tempos, meu camarada! Outros tempos...
Na foto, eu, caracterizado de garçon na filmagem de Mãe Só Há Uma, de Anna Muylaert. Foto da própria.
E é um tal de bater foto, bater foto, bater foto. Não sei qual é a necessidade que as pessoas têm de tirar tanto retrato. Selfie, não é, que chamam agora? Até do prato eles tiram foto. Depois reclamam que está frio... Eu acho que as senhoras que vinham à tarde, para o chá, já faleceram. Ou nem tem mais coragem de sair de casa. Não se pode mais usar nem uma joia. Tão roubando até correntinha de ouro, que é uma coisa barata. Imagina uma joia de verdade, com brilhantes... E os cavalheiros que vinham tomar um scotch no fim da tarde também já devem ter partido pro andar de cima... Pelo menos os novos proprietários conservaram a decoração. Não colocaram telão de plasma. Não consigo entender a função de um televisor ligado em um restaurante. Quem quer assistir tevê que fique em casa! Esses espelhos até o teto, isso tudo veio da Bélgica, de navio. Mas agora ninguém mais dá valor. Quando o pianista toca standards do jazz tem gente que reclama! Decerto eles queriam que tocasse funk! É por isso que eu digo: Outros tempos, meu camarada! Outros tempos...
Na foto, eu, caracterizado de garçon na filmagem de Mãe Só Há Uma, de Anna Muylaert. Foto da própria.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
PARIS, RIO
É histórico e notório que o Rio de Janeiro sempre se espelhou em Paris. Pelo menos de Dom Pedro II em diante, uma vez que nosso Imperador adorava a Cidade Luz e fazia o possível para reproduzir do lado de cá o que tanto o encantava do lado de lá do Atlântico. Tanto que fazia construir parques e jardins inspirados nos de Paris, para nosso deleite e alegria... E a influência francesa é visível não apenas na moda e na gastronomia, mas também nos costumes e na arquitetura. Vide casarios com mansardas e marquises de ferro fundido e vidro que abundam no centro da cidade. Só não consigo entender como as pessoas aguentavam se vestir à francesa aqui no calor dos trópicos. E até hoje a mulherada segue usando chemisiers, peignoirs, négligées e lingéries em geral, vez por outra alongadas no recamier sob a luz difusa do abat-jour... Eu, que já vivi nas duas cidades e as visito frequentemente, me divirto identificando semelhanças entre elas. Carmen Miranda já cantava: Paris, Paris je t'aime, mas eu gosto muito mais do Leme. O que há de Paris no Leme? O simpático bistro La Fabrique. Já a Praça do Lido não tem nada a ver com o Lido de Paris... A Praça Tiradentes, com os teatros Carlos Gomes e João Caetano frente à frente, me remete à Place du Châtelet, com o Théâtre de la Ville e o Théâtre du Châtelet também frente à frente. Assim como o Bar Luis, na Rua da Carioca, é para mim o correspondente carioca do Le Bouillon Chartier, na Rue du Faubourg Montmartre, nos Grands Boulevards. Se bem que o Café Lamas, no Catete, também tem algo do Chartier... Sem falar no Teatro Municipal, nossa Opéra Garnier, e, claro, a Confeitaria Colombo, nossa Angelina tropical art-nouveau. E o que dizer do charme vintage da Confeitaria Manon, que descobri por acaso quando batia pernas na Rua do Ouvidor? Só pelo nome eu já a citaria aqui. Mas o décor é ainda mais incrível... Santa Tereza me traz ares de Montmartre. Não apenas pela altitude, mas também pela concentração de artistas, ateliers e uma certa boemia... Adoro os "afrancesamentos" adotados por alguns estabelecimentos em seus nomes. Como o Paris Gastrô, assim mesmo, com acento circunflexo, que vi da janela do ônibus quando passava pela Praia do Flamengo... Outra coisa que adoro do Rio e que me dá muito a sensação de estar em Paris é a longevidade de determinados estabelecimentos. Aqui, como lá, os lugares tem história. Não é incomum você encontrar no Rio restaurantes com mais de cem anos, por exemplo. Ou parques de duzentos anos. O que, tratando-se de Brasil, não é pouco. Há muitos gatos aqui no Rio, como em Paris, uma alegria para quem como eu ama os felinos. E, para encerrar com muito charme, a Praça Paris, cuja foto ilustra o post. Seria o nosso Parc Monceau? Nosso Jardin du Louxembourg? À vous de décider... Au revoir!
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
PRA MIM CHEGA!
Miguel Thiré precisa ser visto em seu monólogo Pra Mim Chega com urgência! Até porque, essa semana já sairá de cartaz. Só tem mais terça e quarta-feira. Trata-se de one man show. O rapaz é talentosíssimo e encena um verdadeiro tour de force. Ele herdou não apenas a beleza da avó Tônia, mas também o enorme talento. Despudorado, ele encarna seus tipos carioquérrimos até o talo, sem restrições ou barreiras. É um deleite apreciar esse show de interpretação e criatividade. Ele é uma espécie de Pedro Cardoso da nova geração: Expõe cruamente as mazelas, preconceitos e crueldades de seus personagens. Costura suas histórias umas nas outras com habilidade de dramaturgo experiente. Ocupa o espaço vazio do palco como se fosse um grande elenco. E agradece aos aplausos pedindo ao público que divulgue seu espetáculo nas redes sociais, pois trata-se de um trabalho sem patrocínio, feito por ideologia e opção. Dá vontade de levar pra casa... To brincando! Mas, por favor, sem brincadeira: Corra, se jogue, vá assistir sem falta a essa incrível demonstração de inclinação natural para o teatro. É desses espetáculos que não se pode perder...
terça-feira, 17 de novembro de 2015
REZA FORTE
Quem me conhece ou segue o blog sabe do meu caso de amor com Paris e o quanto ele é antigo. Quão antigo ele é eu nem revelo mais com medo de espantar leitores jovens. É antigo. Ponto. E ando, claro, muito triste com os recentes acontecimentos que feriram minha amada cidade. Só que a tristeza em si não é com Paris, e sim com essa demência que é o terrorismo, seja onde for. Todas as campanhas pedem para rezar pela cidade. Precisamos rezar pelo mundo inteiro, ou melhor, pelo ser humano. É ele que está perdido. É ele que sempre foi capaz das piores barbáries. É ele que destrói e mata em nome da fé, do poder, do que for. E alguns seres humanos, do tipo desses que cometem atentados terroristas, nem reza salva. Eu tenho muita fé, apesar de não seguir nenhuma religião, e rezo mesmo, quase diariamente. Mas nesse caso acho que nem reza forte. Nem feitiço. Por incrível que pareça eu gostaria de estar lá em Paris agora. Meio que para tomar conta dela, dos lugares e pessoas de que gosto. Rever cada um dos meus cantinhos preferidos, meus bares, bistrôs, restaurantes, lojas, livrarias, ruas, igrejas, monumentos, parques e jardins. Ter certeza de que nenhum imbecil explodiu minhas coisas amadas, minhas lembranças, meu passado e meu presente. Outra coisa contra a qual não podemos fazer nada é essa inclinação natural do ser humano para a disputa: Primeiro nós, depois eles. Como se nós e eles não fôssemos todos a mesma coisa. Feitos, como disse Shakespeare, da mesma matéria de que são feitos os sonhos. Só que, nesse caso, pesadelos definiriam melhor... Deus, Cristo, Krishna, Buhda, Zeus e toda as mitologias e crenças existentes, oremos com Rita Lee: Deus me perdoe da sua inveja, Deus me defenda da sua macumba, Deus me salve da sua praga, Deus me ajude da sua raiva, Deus me imunize do seu veneno. E, como cantou Cazuza, vamos pedir piedade pra essa gente careta e covarde.
domingo, 15 de novembro de 2015
MURAKAMI DE RESSACA
Depois de dormir não sei quantas horas, ou dias, acordei escritor. Um escritor japonês. O mais importante, expressivo e profícuo da minha geração. Eu era traduzido e lido no mundo inteiro. Um fenômeno de críticas e de vendas. Ou seja, eu teria um longo e complexo dia pela frente. Poderia ter acordado um inseto. Um rapper, uma mulher fruta. Ou, já que era para acordar escritor, que fosse um desses de auto-ajuda, sei lá, pelo menos um Paulo Coelho. Mas não. Do nada, em plena manhã, acordei Murakami. Corri para o computador, inda tonto do que houvera. A tela branca me olhava desafiadora. Onde estão meus personagens? Minhas histórias incríveis, onde se esconderam? Preciso me virar do avesso. Remexer meu passado. Acordar fantasmas adormecidos. Abrir minha mente ao extraordinário. Esse quarto banal, com cama, escrivaninha e janela não vai me levar a lugar algum. Será que tem cerveja na geladeira? Passo os olhos pela casa e encontro uma garrafa de Jack Daniels. Sirvo em um copo baixo. Desce difícil, queimando. Penso em colocar gelo e ouço uma voz sussurrando no meu ouvido: Você colocaria gelo em um vinho? Não. Pensando bem, não faz sentido. No Japão é muito mais frio, penso me desculpando. Tenho muito que viver. Que ler. Que escrever. E o meu dia de Murakami está apenas começando... Tem dois ovos na geladeira. Faço um omelete. Tenho um texto pronto que nem posso postar, pois foge completamente ao estilo. A campainha toca. Tremo. Não estou esperando ninguém. Olho pelo olho mágico. A zeladora me acena com a mão como quem diz: Eu sei que você está me olhando, abre logo. Respiro fundo e abro. Deixaram esse envelope para o senhor ontem à noite. Como já era muito tarde, deixei para entregar hoje. Obrigado. Bom dia para a senhora também. Abro o envelope e a música de Serge Gainsbourg invade o apartamento. Ne dis rien. N'aie pas peur. Um pássaro de cor estranha pousa na janela. Alguém está de gozação comigo. Só pode ser. Vou até ele, que parece querer me dizer algo. Do nono andar vejo dois rapazes sentados no muro em frente confeccionando cigarros artesanais para depois fumá-los. Não. Não é nada disso: Vi dois moleques bolando um beck. Porra. Vou voltar a dormir. Hoje eu não quero ser Murakami. Fim.
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
RIO MUSICAL
Estou impressionado com a quantidade de espetáculos musicais em cartaz no Rio de Janeiro. Não que São Paulo também não viva esse fenômeno, mas, aqui, a coisa parece ter se estabelecido de maneira bem mais significativa. Quase tudo é musical. Dos mais simples aos mais superproduzidos. Credito esse enorme sucesso do gênero em terras cariocas à tradição do Teatro de Revista, que aqui viveu seu esplendor e glória. E, evidentemente, ao samba, às mulatas e seus shows de bikini e plumas no melhor estilo féerie. E por falar em revista, um dos musicais a que assisti foi justamente no Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, berço e palco principal de nossas vedetes. Trata-se de Como Eliminar Seu Chefe, adaptação do filme homônimo estrelado por Janie Fonda e Dolly Parton nos anos oitenta. Meu mestre Luís Arthur Nunes me convidou para acompanhá-lo a convite de nosso amigo Marcos Breda que, no espetáculo, vive o chefe em questão. Adorei o programa. Excelente produção, todos estão bem em seus papéis e cantam maravilhosamente. Fiquei apaixonado pela atriz que faz o papel que foi de Dolly Parton no filme, Sabrina Korgut, de quem eu já era fã pela maravilhosa Adenóide que ela interpreta no seriado Pé na Cova, de Miguel Falabella. Na sequência assisti, na companhia da minha amada, idolatrada Shala Felippe, ao apaixonante Estúpido Cupido, dirigido por nosso amigo/conterrâneo Gilberto Gavronski, com uma deliciosa Françoise Forton encabeçando o elenco. Os hits de Cely Campelo animam gerações que vão à Sala Baden Powel para recordar, reviver & sonhar. Dá vontade de ficar amigo de infância da Tetê, personagem de Françoise... Cito os dois espetáculos a que assisti, mas a lista é enorme e segue com Ou Tudo Ou Nada, Andança, Sambra, Raia 30, Deixa Clarear, Kiss me, Kate, O Beijo no Asfalto e muitos mais... Assisti também à performance de um alemão colaborador de Pina Bausch que merece post especial. Essa não era exatamente musical, mas tocava músicas de Juddy Garland o tempo todo. Se me animar, depois eu conto. No mais, sigo sentindo falta da presteza, agilidade, pontualidade, eficiência & serviços 24 horas de São Paulo... Mas como não amar o Riio?
Na foto, Shala et moi com Gilberto e Françoise.
Na foto, Shala et moi com Gilberto e Françoise.
sábado, 31 de outubro de 2015
PIANO BRASIL VII
Fui assistir ao recital Piano Brasil VII, de Miguel Proença, na Sala Cecilia Meirelles, conforme contei que iria no post anterior. Perfeição resume. Tudo: A sala, as condições técnicas, a acústica, o piano em si, o repertório e, acima de tudo, o pianista. Eu, que nem sabia que Miguel Proença é gaúcho como eu, me enchi de orgulho. Ele arrebata já de saída, abrindo o programa com a Dança dos Espíritos Abençoados, de Gluck. Esqueço tudo e me transporto no tempo e no espaço. Volto irremediavelmente a ser o Robertinho, lá de Soledade, que tinha aulas de piano no colégio das freiras com a professora Tereza e, mais tarde, aulas particulares com a Dona Amélia. Excelente aluno, Robertinho sempre tinha pontos descontados na performance pela examinadora Dona Eugênia, que vinha de Carazinho para as provas de fim de ano. Por quê? Porque não tocava com os dedos certos. Reflexos da sua canhotice, quem sabe. Desde petit ele não era e não gostava de ser como os outros... A récita segue com Nepomuceno e Debussy até o intervalo, quando aproveito para ir até o bar e pedir mais uma taça de vinho. Gisela Amaral está deslumbrante entre a assistência. Distribui charme e elegância no foyer. Volto ao segundo sinal para Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e Chopin. Uma das senhoras atrás de mim comenta que ele está um pouco gordinho. O cheiro de mofo reina nas roupas de noite há tanto guardadas. Me sinto privilegiado de poder assistir à performance deste grande artista internacionalmente reconhecido nessa sala maravilhosa. Nunca havia estado antes nessa casa de espetáculos e tive uma ótima impressão. Só não entendo porque ela se chama Cecilia Meirelles, uma vez que é totalmente dedicada à música. Na minha opinião ela deveria se chamar, sei lá, Sala Chiquinha Gonzaga, por exemplo... Tu não te lembras da casinha pequenina onde o nosso amor nasceu? Relembro minha primeira audição de piano, nervoso, mãos trêmulas no Clube Comercial de Soledade. Podia ter sido um grande pianista. Podia ter sido. O netinho do pianista entra em cena para entregar-lhe flores. A plateia se enternece: Oh... Bravo, Miguel Proença! Grande Fantasia Sobre o Hino Nacional como bis encerra com chave de ouro. Cai o pano. Do lado de fora, a Lapa já ferve na noite de quinta-feira.
Nas fotos, o lustre do foyer e Miguel agradecendo.
Nas fotos, o lustre do foyer e Miguel agradecendo.
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
EU VOU PRA LAPA
Há tempos não vinha passar uma temporada no Rio. E, quando o fazia, ficava sempre na Zona Sul. Aliás, sempre me considerei um garoto Zona Sul, capaz de me virar com bastante desenvoltura do Leme até o Leblon. Agora estou momentaneamente instalado na Lapa. A tão cantada zona boêmia, com seus bares, cabarés, malandros e arcos. E estou adorando. Percorro suas ruas com a curiosidade e o encantamento de um turista estrangeiro. Que por sinal abundam por aqui. Admiro seus casarios, detalhes de fachadas, janelas, portas, muros e escadarias. Imagino Carmen Miranda ainda criança, bem moleca, brincando com os meninos nos largos e praças. Em meio a todo o agito dos botecos e a uma certa decadência instalada, surge, impávida, linda, conservada, refeita e mantida a Sala Cecília Meirelles em pleno Largo da Lapa, de frente para os Arcos e o Circo Voador. Que, por falar, nas minhas andanças já passei e adquiri ingresso para o recital de Miguel Proença na próxima quinta, portanto, amanhã. Depois conto detalhes. Da sala e do recital. Por enquanto sigo descobrindo esse Rio de Janeiro urbano que eu praticamente desconhecia. Não me refiro apenas à Lapa, mas às suas adjacências. Como a bela e tranquila Glória, juste à côté, com seu Outeiro a se destacar no alto, a estátua de São Sebastião a seus pés e a Praça Paris juste en face. Eu sempre vi essa praça de passagem, de dentro de um táxi ou de um ônibus. Nunca havia parado para apreciar seus jardins. Vale a pena, ela é linda demais. E também a Cinelândia, com o Teatro Municipal e o Amarelinho. Sem falar no Largo da Carioca, com o belo relógio e, no alto, o Convento de Santo Antônio. A Praça Tiradentes com seus teatros, a Rua da Carioca que guarda o Bar Luiz há mais de cem anos. Enfim, quem acha que o Rio é só um balneário precisa rever seus conceitos. Ou cruzar o túnel e se deixar levar. E, como canta Alcione, encher o peito e dizer: Eu vou pra Lapa!
Na foto, interior do Bar Luiz.
Na foto, interior do Bar Luiz.
terça-feira, 27 de outubro de 2015
ONE NIGHT IN HEAVEN
Nada me soa mais anos noventa do que essa música do M People a que o título do post se refere. Os anos noventa foram uma coisa meio assim vamos ver no que vai dar: Depois da loucura total, colorida e criativa dos oitenta e antes dos anos dois mil, que a gente esperava há tanto tempo que viessem trazendo o futuro. E deu num monte de coisas boas. Legais, mesmo. Eu já havia morado um ano em Paris e, de volta ao Brasil, morei um ano no Rio de Janeiro. Logo, em 1992, ainda começo da década, estava eu de volta a Porto Alegre com a sensação de que ela, a cidade, já me rendera tudo o que poderia render. Foi transição total para o que viria quase no fim da década: São Paulo. Mas muito animada, essa transição. Lembro que na Avenida Independência tinha uma balada chamada Gueto que fervia nos fins de semana. Eu ia com meu amigo Guto e nos jogávamos nas pistas bebendo muita Corona, a cerveja que bombava na época, e ouvindo muita Corona, a cantora que também bombava na época. E, claro, muito M People. Especialmente One Night In Heaven. E tinha também o Elo Perdido, bar alternativo/descolado que ficava em frente à nossa casa. Digo nossa porque morávamos, Guto e eu, no mesmo prédio da Rua Garibaldi, o Edifício Navarra. Mais para baixo, pros lados da Redenção, tinha o ainda mais alternativo Megazine, nossa pedida para as segundas e terças-feiras. Digo nossa porque só nós íamos a esse bar nesses dias da semana... Mas nem só de bares e baladas eram feitos os nossos dias naquela distante década. Havia trabalho criativo também. Meu teatro e as fotografias do Guto. E, às vezes, os dois juntos. Como em Amor à la Carte, meu show em dupla com Marione Reckziegel que o Guto fotografou não só em cena, mas em ensaios incríveis nos puteiros da Avenida Farrapos e na Rodoviária de Porto Alegre... Bons tempos! Sem falar, é claro, no Ocidente. Que atravessou décadas e até hoje continua atravessando. Acho que os anos noventa significaram para mim uma noite no paraíso, mesmo. Na voz rouca e grave da cantora do M People.
Nas foto, Marione Reckziegel et moi, os Love Singers, em ensaio de Guto de Castro. Na cozinha do Richard Arte & Café, onde estreamos o show Amor à la Carte.
Nas foto, Marione Reckziegel et moi, os Love Singers, em ensaio de Guto de Castro. Na cozinha do Richard Arte & Café, onde estreamos o show Amor à la Carte.
sábado, 17 de outubro de 2015
PLANETA AUGUSTA
Quando cheguei na esquina da minha rua e virei à esquerda, a Rua Augusta não parecia a mesma dos outros dias. Uma profusão de carros e pessoas a congestionava desde lá de baixo, pros lados da Estados Unidos, até lá em cima, na Avenida Paulista. Sem conseguir saber do que se tratava, segui meu caminho em direção ao teatro onde logo mais à noite me apresentaria. Eu era ator e estava em cartaz em um pequeno teatro que fica na própria Augusta, só que do outro lado, além da Avenida Paulista, mais conhecido como Baixo Augusta. Eu carregava comigo uma pequena mala com os figurinos que usaria no espetáculo e um skate, que usava em um dos meus personagens. Estava tão difícil subir a rua naquele dia que pensei que não ia conseguir chegar ao teatro a tempo de me apresentar. O mais curioso é que ninguém sabia me dizer o que estava acontecendo. Me senti mais ou menos como um estrangeiro perdido numa terra estranha. Tentei conversar com um rapaz barbudo que trazia o cabelo preso em uma espécie de cocoruto no alto da cabeça. Ele parecia não entender a minha língua. E seguiu seu caminho com os braços cobertos por tatuagens. Só então percebi que todos à minha volta haviam adotado a mesma barba e o mesmo penteado. As barbas eram longas, de época, e alguns tinham bigodes também de época, com as pontas retorcidas. A rua toda estava tomada por eles. Um exército de talibãs de coque. Tanto homo quanto heterossexuais , todos haviam sucumbido à tendência. Seria apenas uma tendência, pensei, ou tratava-se de algo maior, que escapava à minha compreensão? Alguma nova seita, talvez. Nessa altura eu já havia atravessado a Paulista e descia a Augusta em direção ao basfond. Sou quase atropelado por um ciclista que me chama de veado. Um princípio de incêndio em um pequeno hotel de encontros era a causa do enorme engarrafamento que já atingia quarenta e cinco saunas mistas de extensão. Uma prostituta sorri e pisca para mim e me sinto bem. Ela está tão linda, vestida como uma bonequinha japonesa, com um espartilho tão apertado na cintura que parece que vai parti-la em duas a qualquer momento. Pergunto se posso fotografá-la e ela faz que não, movendo a cabeça para os lados. Que pena, daria uma bela postagem no meu instagram. Em meio à turba segui meu trajeto com a sensação de que não iria conseguir chegar ao destino final. Penso em Blade Runner, de Ridley Scott. One more kiss, dear... Não devo ser deste planeta, pensei enquanto olhava pra trás antes de entrar no teatro para me transformar em pessoas normais... Cai o pano. Blackout. Aplausos imaginários, por favor.
"Para haver algum luxo, por Deus, que eu também preciso! Amém para todos nós"... Aspas e crédito para Clarice.
"Para haver algum luxo, por Deus, que eu também preciso! Amém para todos nós"... Aspas e crédito para Clarice.
quinta-feira, 8 de outubro de 2015
AUSENTE
Andei por lugares distantes. Confins. Me perdi de mim mesmo para depois, novamente, me encontrar. Percorri encostas, escarpas, trilhei as mais inóspitas trilhas. Subi, desci, suei, chorei, senti frio, tive medo, muito medo, medo de não mais me encontrar, medo de perder a vida, medo de mim mesmo caso ficasse frente a frente comigo. Revi pessoas queridas que já se foram e esses encontros foram cheios de vida e de significados. Num determinado ponto da minha jornada chegou a ficar tudo muito escuro. Não era capaz de ver nada à minha frente. Nem atrás. Onde estava aquele que eu era? Aquele que fui? Todos gostavam de mim, eu lembrava. Eu tinha muitos amigos, pensava. Onde é que eu tinha ido parar? Aquelas iniciativas incríveis que eu tinha, porque agora não tenho mais? Cadê todos aqueles happy hours, os bota-foras, as despedidas de solteiro? Os aniversários surpresa, até estes tinham desaparecido. Eu não pertencia mais a nenhum grupo. De amigos, de viagem, de teatro. Não era de nenhum partido, não torcia para time algum. Os meus LPs estavam todos riscados, nos sulcos do vinil tinha poeira entranhada, nada mais conseguia limpar. Simone não tinha mais medo de amar, Roberto não se atinha a detalhes, Nara não via a banda passar. Tudo já havia passado. Teria eu ficado para trás? Lá nos setenta, oitenta, noventa. Junto com a Vespa e as calças baggy. Perdido numa esquina do Bom Fim. Esquecido em um canto de boate. As cartas! Com certeza as cartas guardavam respostas. Não as do baralho, a correspondência mesmo. Aquelas que eram enviadas via aérea, mala postal. A gente esperava com tanta ansiedade que elas chegassem, nada desse imediatismo whasápitco, facetimeco... Andei mais, subi mais, desci mais. Procurei em cada canto da casa e da memória, virei esquinas de Paris, Porto Alegre, São Paulo, Soledade. Até que finalmente voltei, me revi, me reencontrei... Cabelos restam poucos, quase todos brancos, a pele já não tem o mesmo viço de outrora, a barriga começa a se pronunciar. Quase tudo mudou. A essência das coisas e das pessoas, essa, eu acho que permanece a mesma. Para o bem e para o mal. Fazer o quê...
Na busca encontrei esse poema que escrevi quando tinha dezoito anos e que tem o mesmo título do post:
Estrelas existem milhares
Companhia também nunca falta
O que falta é a alegria
Que os teus olhos espalham nos ares
O que falta é o que está contigo
O que falta é a tua presença...
Na foto, eu jovem poeta sempre sentado à janela do apartamento em Porto Alegre.
Na busca encontrei esse poema que escrevi quando tinha dezoito anos e que tem o mesmo título do post:
Estrelas existem milhares
Companhia também nunca falta
O que falta é a alegria
Que os teus olhos espalham nos ares
O que falta é o que está contigo
O que falta é a tua presença...
Na foto, eu jovem poeta sempre sentado à janela do apartamento em Porto Alegre.
quarta-feira, 7 de outubro de 2015
PARADIESVOGEL
Ave do paraíso, diz o título do post em alemão. É também o nome do novo álbum do cantor brasileiro Edson Cordeiro, radicado em Berlim há oito anos. Edinho me explicou que a expressão tem o sentido de algo que não é comum, exótico, raro. E é exatamente disso que se trata, não apenas o álbum, mas o cantor em si. Avis rara, Edson migrou para a Europa em busca de mais e maiores possibilidades. E felizmente as encontrou. A prova é esse belo e sensível registro. O CD abre com a canção título, Paradiesvogel, seguida da passarada toda: Asa Branca, Azulão, Assum Preto e uma surpreendente versão de Cucurrucucú Paloma, na qual ele estende a sustentação das notas além do limite humano. Graves insuspeitados surgem ampliando ainda mais a sua já conhecida extensão vocal. O disco segue passeando pelo cancioneiro brasileiro e internacional, indo de Carmen Miranda a Caetano Veloso, passando por Carpenters, The Cure e uma versão em inglês para a Balada do Louco, de Arnaldo Baptista. Está a venda no iTunes, corre lá e adquire logo! E pra quem tem saudades de dançar ao som da voz desse cantor incrível, ele está se apresentando todas as sextas-feiras de outubro no Grazie a Dio, aqui em São Paulo, na Vila Madalena, com muito samba-rock e disco music. Se joga!
Na foto, Edson na capa do CD, clicado pelo genial Gal Oppido.
Na foto, Edson na capa do CD, clicado pelo genial Gal Oppido.
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
LIÇÕES DE SETEMBRO
A primeira de todas: Desapego. Sempre e cada vez mais. Material e imaterialmente falando: De coisas, pessoas e sentimentos. Arejando espaços e relações... Como uma traça gorda, devoro paulatinamente mais um Murakami: Kafka à Beira Mar. Estou completamente entregue a esse escritor que, mergulhando na escuridão subconsciente de seus personagens, me coloca frente a frente com minhas próprias escuridões... Encerrei em Goiânia a temporada 2015 de Homens Insanos. Citando Paulinho da Viola, que sempre é bom da gente citar, foi um rio que passou em minha vida... Fui às lágrimas mais uma vez com Cida Moreira na pequena Casa de Francisca, ocasião em que ela nos brindou com uma prévia de seu show Soledade que, por ter o nome da minha cidade natal, já faz com que me sinta homenageado. Cida me transportou para as aulas de música que eu tinha no Ginásio Estadual de Soledade com a Dona Flora, quando ela me convidava a tocar piano para a classe. Lembrou os sonhos que eu tinha... Fortes emoções, só que de outras naturezas, me foram provocadas pelo eletrizante Passinho, espetáculo coreografado por meu amigo Rodrigo Vieira junto com Lavínia Bizzotto. O funk carioca posto em cena de maneira inusitada e surpreendente... Baby & Pepeu voltaram a tocar juntos no Rock in Rio matando saudades, levando a galera à loucura e provando a todos que estão amarrados em nome de Jesus... E por último, mas não menos importante: Phedra por Phedra. Um petit cabaret da atriz/cantora/dançarina trans-cubana Phedra de Córdoba, no Espaço Parlapatões. Do alto dos seus setenta e sete anos, Phedra, digníssima, fez o show para as quatro pessoas que formavam a plateia. Qua-tro. Cheia de borogodó ela cantou, tocou castanholas e contou passagens de sua vida. Encerrou dizendo-se exausta, sem voz e sem fôlego. Mas que, mesmo assim, não podia deixar de se apresentar. E, com a humildade dos grandes artistas, pediu a cada um dos quatro presentes que voltassem trazendo mais gente. The show must go on. Viva Phedra! E fala-se em crise de público nos teatros... Que mais? Ah, não vamos brigar com os amigos por causa de política, né? Nenhum político de partido algum merece que amizades sejam desfeitas em sua defesa... E vamos em frente que amanhã outubro estará aí. Tchau, mês de setembro. Citando Vanusa nas suas antigas manhãs desse mês: Fui eu que consegui ficar e ir embora...
Na foto, o palco vazio dos Sátiros aguarda a entrada de Phedra de Córdoba.
Na foto, o palco vazio dos Sátiros aguarda a entrada de Phedra de Córdoba.
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
SOZINHO NO ESCURO
Dia desses, sozinho em mais um quarto de hotel, não conseguia de jeito nenhum desligar o ar condicionado para dormir. Decidi então tirar o cartão daquele receptor que faz com que tudo funcione e, depois de alguns segundos ou minutos, o ar desligou. E com ele tudo mais que era movido a eletricidade. A luz, inclusive. Me vi mergulhado na mais completa escuridão. Desisti de dormir e fiquei sentado a uma poltrona procurando observar o que me cercava. Súbito percebi que não estava sozinho. Havia uma forte presença ao meu lado na escuridão. Podia sentir o seu cheiro e ouvir sua respiração. E mais: Eu era capaz de sentir a sua pulsação. Aos poucos fui me dando conta de que essa estranha presença não estava ao meu lado e sim dentro de mim. Voilà: Era eu mesmo finalmente percebido por mim. Há quanto tempo eu teria estado assim, ausente de mim mesmo? Em que eu prestava tanta atenção ao ponto de esquecer de mim? Lentamente fui percebendo que grande parte das coisas que me atormentavam não tinham mais tanta importância. Respirei fundo e senti enorme prazer nesse ato. Será que eu não andava nem respirando mais? Fui gostando cada vez mais de estar na minha companhia. Deve ser por isso que as pessoas gostam de estar comigo, pensei. Já estava me sentindo do tamanho do quarto quando adormeci sem perceber. Sonhei que estava sozinho e isso era muito bom...
quinta-feira, 10 de setembro de 2015
FAIS-MOI MAL, JOHNNY!
To muito apaixonado pelo Johnny Hooker. Pronto, falei! Eu sei que é meio brega, desbragado, apaixonado e tal. Pois é justamente por isso! Ainda por cima ele é abusado, provocativo, despudorado. Nada mal nesses tempos caretas e conservadores, n'est ce pas? Johnny é, em bom português, um exagerado. Como Cazuza. Ney Matogrosso. Dzi Croquettes. Adoro. Fui vê-lo na festa Pardieiro, no Cine Joia. Valeu por tê-lo visto ao vivo e de perto. Mas o som estava abafado e distorcido. E as pessoas que foram à festa não faziam questão de apreciá-lo: Estavam ocupadas demais fotografando, filmando e cantando junto com ele aos berros e desafinadamente. Uma pena. Espero ter a oportunidade de assistir a um show desse rapaz em um teatro. Estou velho demais para essas festas... O título do post refere-se à canção homônima de Boris Vian, que aqui no Brasil teve versão em português gravada pela Banda Luni (lembram?) com o sugestivo nome de Me Machuca, Johnny! E é isso que faz Johnny Hooker: Machuca os corações apaixonados... Adoro o título de seu álbum: Eu Vou Fazer Uma Macumba Pra Te Amarrar, Maldito! E vou dizer uma coisa: Sua macumba é poderosa. Fafá de Belém, esperta e atenta aos sinais que é, já gravou a canção Volta, de Johnny, em seu novo álbum recém lançado pela Joia Rara, do DJ Zé Pedro. Essa canção também está na trilha sonora do filme Tatuagem que, se você ainda não viu, precisa fazê-lo com urgência. Fica a dica. Ou melhor, ficam as dicas... Se joga lá!
terça-feira, 8 de setembro de 2015
O CAMAREIRO
Não me canso de falar aqui no blog da minha enorme admiração por Kiko Mascarenhas. Sempre que esse grande ator vem a São Paulo nos brindar com seu talento eu sinto que melhoro como ser humano... Dessa vez ele nos trouxe O Camareiro, de Ronald Harwood, espetáculo que, além de protagonizar, Kiko também produz. Como se fosse pouco, ainda traz de volta aos palcos o lendário Tarcisio Meira, que há vinte anos não atuava no teatro. Kiko dá conta da dupla jornada com a excelência de sempre. Seu Norman é construído com tal sutileza e riqueza de detalhes que aparece até na maneira como ele manipula os objetos em cena. Como respira. Como se movimenta. E, sobretudo, na propriedade com que pronuncia suas falas. O espetáculo é imperdível, a tradução de Diego Teza é excelente e a diração de Ulisses Cruz é um primor. Uma grande homenagem ao teatro e aos atores. Quando eu ainda era um jovem adolescente em Porto Alegre, assisti a Tudo Bem No Ano Que Vem, com Tarcisio e Glória Menezes no auge do sucesso e da beleza. Depois, quando vim para São Paulo em meados dos anos noventa, os vi na montagem de uma sequência da mesma peça, chamada E Continua Tudo Bem. Agora, passados vinte anos, fui às lágrimas com o retorno à cena desse ícone do teatro contracenando com meu amigo. Lindos e iluminados. Kiko é um tipo de ator que todos nós atores gostaríamos de ser: Dono de uma versatilidade quase elástica, que lhe permite fazer o que quiser sur la scène. E muito bem. Vai do drama à comédia com graça, intensidade e paixão. Sempre inteiro e disponível no que faz. E com um carisma invejável! Me senti muito privilegiado na noite da estreia. Por ter sido convidado e por ele ter vindo estrear aqui em São Paulo. Além de agradecer, só posso desejar muito sucesso e longa vida a O Camareiro! Até dezembro no Teatro Porto Seguro. Você não pode perder...
Nas fotos, o impecável Norman de Kiko Mascarenhas em foto de Lenise Pinheiro e Sir Tarcisão recebendo os aplausos em foto de Weidy Leite.
Nas fotos, o impecável Norman de Kiko Mascarenhas em foto de Lenise Pinheiro e Sir Tarcisão recebendo os aplausos em foto de Weidy Leite.
sábado, 5 de setembro de 2015
DRAG QUEEN
Adoro o termo. Mas, ainda mais do que o termo, o fenômeno em si. Pelo menos eu considero um fenômeno um homem se transformar em mulher só no truque e nos efeitos e voltar a ser homem logo em seguida. Tenho uma amiga drag queen: a Leia Bastos. Quando não está drag, a Leia vira Alexandre. E os dois são completamente diferentes. Parecem duas pessoas. Adoro quando o Alexandre chega na minha casa e se anuncia ao porteiro como Leia. E o porteiro interfona dizendo: É o seu Leia. Ou quando ele chega de Leia, já montada, causando. Ou, ainda, quando chega de Alexandre, se monta na minha casa e vai embora de Leia. Sempre divertido e inusitado. Ou divertida e inusitada. Somos amigos há tanto tempo que ninguém mais estranha... Quando me mudei para São Paulo, em 1996, as drags estavam em alta. Bombavam, causavam, fechavam! Logo fiquei amigo de quase todas. Tinha a Alma Smith, para mim a mais folclórica. Nordestina de sotaque pronunciado, Alma era forte, bombada mesmo, e vendia papelotes de cocaína que guardava nos peitos. Quando chegava nos lugares já ia logo disparando seus bordões: Quem for gay que me olhe! E, com a mão no peito: Quantos? Impagável. Bombava também o trio Natasha Rasha, Cintia Gregory e Simplesmente Nenê, autoras do hit Não Sei Dublar, uma subversão de Unbreak My Heart, de Toni Braxton. Tinha também a já então diva Silvetty Montilla, mais Paulete Pink, Jimmy Kear, Léo Akila e tantas outras. Todas rainhas. Rainhas da noite. Luxo, babado e confusão. Foram título e tema de música de Rita Lee e Antonio Bivar. Eu já me montei duas vezes, na Banda do Redondo, um bloco de rua que sai na semana do Carnaval aqui em São Paulo. (Fiquei horrorosa, a cara da Tereza Raquel). Hoje elas estão super profissionais, participam de reality-shows, do concurso da Ru Paul, viajam o mundo com suas performances e etc. Mas eu gosto mesmo é das nossas.E tenho saudades de quando elas desciam a Rua da Consolação sobre o capô dos carros, enlouquecendo os tradicionais moradores dos Jardins...
Na foto, meu amigo Leia fazendo a bonita.
Na foto, meu amigo Leia fazendo a bonita.
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
SOLEDADE
Confesso que senti um certo ciúme quando Cida Moreira me contou que seu novo CD se chamaria Soledade. Como assim, pensei, ela vai dar o nome da minha cidade ao seu CD? Depois a própria Cida me contou que o título se refere à pequena Soledade da Paraíba, que ela conheceu quando filmava com Guilherme Weber por aquelas bandas. Assim o meu ciúme se aplacou. Não era a minha pequena Soledade do Rio Grande do Sul! E agora que escuto o seu já lançado e belíssimo CD, me dou conta de que a Soledade de Cida é muito mais. Muito maior. É universal e também atemporal. A viola gemeu e meu coração estremeceu: Cida sabe como poucas falar direto ao coração. Seu canto é infalível. Não importa quem tenha escrito ou em que época tenha sido composta a canção: Ela passa a ser a voz de Cida Moreira rendendo inexoravelmente quem a escuta. Novos sentidos e proporções são atribuídos a antigas e novas canções. Como à minha preferida Um Gosto de Sol, de Milton e Ronaldo Bastos, que Cida retoma do icônico álbum Clube da Esquina, que embalava as noites da minha juventude em Soledade, quando o céu tinha tantas estrelas que eu esquecia até de dormir. Como uma pera se esquece, sonhando numa fruteira... E à novíssima Forasteiro, de Helio Flanders e Thiago Pethit. Pura emoção e poesia do início ao fim, Soledade é uma obra de arte. Uma pequena jóia. E eu vou do ciúme à mais completa gratidão: Obrigado, Cida Moreira, por ter atribuído novos sentidos e proporções também ao nome da minha cidade. Como já cantou Teixeirinha: “Soledade é solidão. Solidão é uma saudade. É em homenagem a uma cidade que eu canto essa canção”. As canções que Cida canta homenageiam todas as cidades do mundo. As pequenas e as grandes. Sua Soledade é imensurável. E o pulso ainda pulsa, atualizando os versos dos Titãs na verve eletrônica de Ricardo Severo. A lua já deve andar tonta com tamanho esplendor...
Na foto, Cide et moi juntando as soledades no La Fiorentina.
Na foto, Cide et moi juntando as soledades no La Fiorentina.
domingo, 30 de agosto de 2015
QUANDO ENTRAR SETEMBRO
Não queria por nada nesse mundo encerrar o mês de agosto com apenas dois posts aqui no blog. Por isso, me lancei nessa página em branco assim, de improviso, para ver o que acontece. E, aconteça o que acontecer, encerrarei o mês com, pelo menos, três posts. O que, na minha opinião, ainda é pouco. Se eu fosse colunista de um jornal ou revista já teria sido demitido nesse famigerado mês. Tantas coisas aconteceram nesse agosto! Teve a pré-estreia e a subsequente estreia do filme Que Horas Ela Volta, de Anna Muylaert, do qual participo como ator em uma cena pequena mas bastante marcante para mim. Sou suspeito para falar, mas o filme é maravilhoso. Anna, além de excelente diretora, é uma roteirista de mão cheia. E Regina Casé, a protagonista, dá um show de interpretação. Sem falar em Camila Márdila, que faz a filha, e em Karine Telles, a patroa "quase da família " que reinventa a vilania ao construir sua Bárbara cheia de nuances e camadas. Ninguém pode deixar de assistir a esse filme, ok? Que mais... Ah! Estive em Porto Alegre para a visita semestral às minhas dentistas. Revi minha irmã, minha sobrinha e amigos muito queridos. Lembram do João, meu amigo de Paris? Também encontrei-o por lá. Assim como nossa amiga Eleonora, voltando de sua temporada parisiense. Bebi muito vinho. Uísques que minha irmã trouxe da Escócia. Voltei a São Paulo para o encerramento da temporada dos Homens Insanos no Teatro Augusta. Sigo lendo Haruki Murakami, agora o seu intrigante Caçando Carneiros. E, já quase no fim do mês, tivemos a lamentável perda da radialista e atriz Mary Mezzari, vítima de infarto fulminante. Uma tristeza. Eu acabara de vê-la no documentário Filme Sobre Um Bom Fim, do qual falo no post anterior. Adorava ser entrevistado por ela. Deixa muita saudade. Mas, quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos, prometo voltar cheio de novidades. Ou dúvidas, reflexões, questionamentos. Que é o que alimenta esse blog. Não desistam de mim, por favor!
Na foto, a capa do antológico álbum Sol de Primavera, De Beto Guedes, cujos versos citei acima.
Na foto, a capa do antológico álbum Sol de Primavera, De Beto Guedes, cujos versos citei acima.
sexta-feira, 21 de agosto de 2015
BOM FIM
Morei grande parte da minha vida, dos catorze aos trinta e três anos, em Porto Alegre. Mais exatamente, no bairro Bom Fim. Mais exatamente ainda, na Rua Garibaldi, entre a Vasco da Gama e a Osvaldo Aranha. A meia quadra da Redenção. A três quadras do Ocidente. Do fim dos anos setenta até a metade dos noventa, quando mudei para São Paulo. Mas nunca perdi o contato com a cidade nem com o bairro. Ontem fui abduzido pelo documentário Filme Sobre Um Bom Fim, de Boca Migotto, que me transportou para aquela época de sonhos e ilusões quando tínhamos, como bem frisou o Miranda em seu depoimento, uma grande esperança de dar certo. À medida que a gente vai envelhecendo começam a surgir livros, documentários e outras obras retratando o que vivemos na juventude e que hoje já é passado. E é engraçado ver como cada pessoa tem a sua versão das mesmas coisas e fatos que vivemos in loco. E que mostraríamos de maneira completamente diferente, se fôssemos fazer o nosso livro ou filme. Há uma tendência, nessas manifestações artísticas, de supervalorizar o passado, o que não me agrada muito. Sempre prefiro o hoje. Melhor ainda, o agora. Mas, inevitavelmente, o agora já já será passado também. Por isso é preciso estar atento e forte... Para que no futuro saiamos bem na foto. Ou livro. Ou filme. Adorei rever amigos queridos como Sergio Lulkin, Shala Felipe, Martinha Biavaschi, Egisto Dal Santo e tantos outros nos seus verdes anos. Eu continuo perambulando pelas ruas do Bom Fim, agora durante o dia. Aprecio as árvores, as flores e a arquitetura. O Parque da Redenção. A Osvaldo Aranha. Os ipês floridos dando um show em tecnicolor. Lugares onde antigamente eu perambulava pela noite, embriagado de álcool, ilusões e esperanças, em busca de sexo, amor, e um futuro de realizações e sucesso. Com a certeza absoluta de que pra viajar no cosmos não precisa gasolina...
Na foto, ipê rosa causando no Parque da Redenção.
Na foto, ipê rosa causando no Parque da Redenção.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
SONHOS
Tudo era apenas uma brincadeira e foi crescendo, crescendo, me absorvendo. Tive sonhos estranhos nesse começo de agosto. Sonhei que viajava na leitura do romance de um escritor japonês, cujo protagonista se envolvia com garotas de programa e visitava um homem carneiro na escuridão do andar misterioso de um hotel. O escritor era Haruki Murakami e o livro, Dance dance dance. Depois eu ia assistir a um espetáculo incrivelmente interessante chamado Krum, que a atriz Renata Sorrah encenara com um grupo de teatro de Curitiba. Ou teria sido antes? Nos meus estranhos sonhos de agosto eu também era convidado para uma estreia VIP da comemoração de trinta anos de carreira de Claudia Raia, uma espécie de stand up comedy musical, que contava toda a trajetória dessa estrela do teatro, da dança e da televisão alternando depoimentos autobiográficos com números musicais, seguido de coquetel regado a champanhe, vinho, uísque e delícias de uma rede de restaurantes pseudo-franceses que apoiava o evento. Sem falar no escandalosamente lindo cenário de Gringo Cardia e nos figurinos bafônicos de Fabio Namatame. Quando se trata de Claudia Raia, a gente espera pelo menos uma noiva que chegue ao altar da Candelária com o véu ainda pra fora da porta... E o sonho seguia comigo novamente em cartaz na capital paulista com Homens Insanos, dessa vez com Wandy Doratiotto no elenco, e mais um convite para stand up comedy musical, dessa vez protagonizado por Mariza Orth, uma espécie de pocket Claudia Raia ou, melhor dizendo, um Raia 30 diet muito bom ou até melhor. Em Romance Volume III, Marisa canta, encanta e faz rir com textos impagáveis. O filme que participei, um documentário sobre o escritor Caio Fernando Abreu, passava num bar-teatro do Baixo-Augusta para uma plateia que se mandou ao término da projeção sem demonstrar o menor interesse em fazer perguntas para a autora do roteiro que estava presente. E por fim, eu viajava para Florianópolis para me apresentar com os Homens Insanos e ficava hospedado em um maravilhoso hotel na praia de Jurerê Internacional: O Il Campanario. Com direito a chefs de vários restaurantes me contemplando com suas criações e à visita de minha irmã e suas amigas que tinham vindo do sul para me assistir. Então adormeci e me dei conta de que nada fora sonho, tratava-se da mais pura e concreta realidade... Mas não tem revolta não. Bem vindo, mês de agosto. Amanhã será um novo dia, certamente eu vou ser mais feliz...
Na foto, encarno o Homem Carneiro de Murakami.
Na foto, encarno o Homem Carneiro de Murakami.
quarta-feira, 29 de julho de 2015
TURNÊ
(Fragmento de Futuro Livro)
Quando minha mãe foi hospitalizada eu estava viajando há dois anos com a turnê de um espetáculo de sucesso. Recebi uma ligação da minha irmã e fiquei completamente transtornado. Afinal de contas, minha mãe não tinha nenhum problema de saúde, estava ótima na última vez que falara comigo. Ao me ver chorando debruçado na janela do meu quarto de hotel, a diretora do espetáculo me disse gentilmente que, se eu quisesse largar tudo e ir ao encontro da minha mãe, eu poderia fazê-lo. Eu agradeci e disse que não, que não precisava. Eu acreditava que minha mãe ia ficar boa e logo tudo voltaria ao normal. Uma semana depois eu já estava em minha casa e tomava o café da manhã quando o telefone tocou e era uma amiga e conterrânea com quem eu não falava há muito tempo. Tudo bem com você, ela me perguntou. Tudo, respondi. Estou ligando para saber se você precisa de ajuda. Ajuda com o quê, perguntei sem entender direito. Com o que aconteceu com sua mãe, respondeu ela. O que aconteceu com minha mãe, indaguei já meio que prevendo a resposta. Silêncio do outro lado da linha. Minha mãe morreu, perguntei. Desculpa, achei que você já soubesse. Fui atropelado por aquele peso das grandes verdades inquestionáveis que nos imobiliza e silencia. Minha amiga, completamente sem jeito por ter sido a portadora da má notícia, cuidou de ver passagem aérea, me buscar em casa e me levar catatônico ao aeroporto. Cheguei a tempo de velar as últimas horas de minha mãe e depositá-la no túmulo. A turnê do meu espetáculo seguia suas apresentações. Naquela noite, sem mim. Mas, no dia seguinte, como convém a todo artista, lá estava eu sobre o palco fazendo rir uma plateia que sequer imaginava como eu estava por dentro. Eu, que a vida inteira só tive amigo boleteiro, maconheiro, marginal. As mulheres tudo puta ou sapatão, os homens tudo viado, gente que só queria saber de ficar até altas horas da noite na rua bebendo, cantando, tocando violão e se chapando, eu que desde a mais tenra idade só andava com gente mais velha, olha eu ali sem saber o que fazer nem o que pensar. Eu tinha, apesar dos maus hábitos e das más companhias, dado certo. Tinha me tornado uma boa pessoa, um cidadão honesto e cumpridor dos meus deveres. E, ainda por cima, estava fazendo um certo sucesso. A morte de alguém que amamos tem o poder de gerar essa reflexão sobre tudo o que vivemos. A vida passa como um filme e traz a sensação de que podemos ser o próximo a partir. Aquele ano não estava sendo nada fácil. Meses antes a produtora do espetáculo falecera depois de um longo período enferma, complicações no fígado que acabaram gerando um transplante que gerou uma rejeição. Uma morte tola e fora de hora, prematura, a pessoa no auge da produtividade, boa e lúcida como poucas e de uma sensatez sempre bem vinda. Mas Deus insiste em se precipitar no afã de ter consigo gente que ainda tem muito pra dar por aqui... Tanto sucesso profissional misturado a tanta dor. Às vezes ficava difícil administrar. Entrar em cena para fazer os outros rirem quando você só sente vontade de chorar. O velho clichê do palhaço triste. Fazer o quê, the show must go on! Outro clichê brabo... E a turnê seguia, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Eu estava finalmente conhecendo um pouco desse país de dimensões continentais. Com perdas e ganhos, com baixas e novas aquisições, seguíamos levando riso & reflexão a quem estivesse interessado. E, devo dizer, não eram poucos.
Na foto, meu personagem Betina Botox saindo de cena.
Quando minha mãe foi hospitalizada eu estava viajando há dois anos com a turnê de um espetáculo de sucesso. Recebi uma ligação da minha irmã e fiquei completamente transtornado. Afinal de contas, minha mãe não tinha nenhum problema de saúde, estava ótima na última vez que falara comigo. Ao me ver chorando debruçado na janela do meu quarto de hotel, a diretora do espetáculo me disse gentilmente que, se eu quisesse largar tudo e ir ao encontro da minha mãe, eu poderia fazê-lo. Eu agradeci e disse que não, que não precisava. Eu acreditava que minha mãe ia ficar boa e logo tudo voltaria ao normal. Uma semana depois eu já estava em minha casa e tomava o café da manhã quando o telefone tocou e era uma amiga e conterrânea com quem eu não falava há muito tempo. Tudo bem com você, ela me perguntou. Tudo, respondi. Estou ligando para saber se você precisa de ajuda. Ajuda com o quê, perguntei sem entender direito. Com o que aconteceu com sua mãe, respondeu ela. O que aconteceu com minha mãe, indaguei já meio que prevendo a resposta. Silêncio do outro lado da linha. Minha mãe morreu, perguntei. Desculpa, achei que você já soubesse. Fui atropelado por aquele peso das grandes verdades inquestionáveis que nos imobiliza e silencia. Minha amiga, completamente sem jeito por ter sido a portadora da má notícia, cuidou de ver passagem aérea, me buscar em casa e me levar catatônico ao aeroporto. Cheguei a tempo de velar as últimas horas de minha mãe e depositá-la no túmulo. A turnê do meu espetáculo seguia suas apresentações. Naquela noite, sem mim. Mas, no dia seguinte, como convém a todo artista, lá estava eu sobre o palco fazendo rir uma plateia que sequer imaginava como eu estava por dentro. Eu, que a vida inteira só tive amigo boleteiro, maconheiro, marginal. As mulheres tudo puta ou sapatão, os homens tudo viado, gente que só queria saber de ficar até altas horas da noite na rua bebendo, cantando, tocando violão e se chapando, eu que desde a mais tenra idade só andava com gente mais velha, olha eu ali sem saber o que fazer nem o que pensar. Eu tinha, apesar dos maus hábitos e das más companhias, dado certo. Tinha me tornado uma boa pessoa, um cidadão honesto e cumpridor dos meus deveres. E, ainda por cima, estava fazendo um certo sucesso. A morte de alguém que amamos tem o poder de gerar essa reflexão sobre tudo o que vivemos. A vida passa como um filme e traz a sensação de que podemos ser o próximo a partir. Aquele ano não estava sendo nada fácil. Meses antes a produtora do espetáculo falecera depois de um longo período enferma, complicações no fígado que acabaram gerando um transplante que gerou uma rejeição. Uma morte tola e fora de hora, prematura, a pessoa no auge da produtividade, boa e lúcida como poucas e de uma sensatez sempre bem vinda. Mas Deus insiste em se precipitar no afã de ter consigo gente que ainda tem muito pra dar por aqui... Tanto sucesso profissional misturado a tanta dor. Às vezes ficava difícil administrar. Entrar em cena para fazer os outros rirem quando você só sente vontade de chorar. O velho clichê do palhaço triste. Fazer o quê, the show must go on! Outro clichê brabo... E a turnê seguia, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Eu estava finalmente conhecendo um pouco desse país de dimensões continentais. Com perdas e ganhos, com baixas e novas aquisições, seguíamos levando riso & reflexão a quem estivesse interessado. E, devo dizer, não eram poucos.
Na foto, meu personagem Betina Botox saindo de cena.
quinta-feira, 16 de julho de 2015
TÃO BLUES
Até hoje me lembro do dia em que entrei na loja de discos Spotless, no começo dos anos oitenta em Porto Alegre, coloquei os fones de ouvido e pus para tocar o primeiro LP de Ângela Ro Ro. Eu obviamente já conhecia Amor Meu Grande Amor, a faixa de trabalho que tocava na TV e nas FMs, mas as demais eram tão blues! Nos meus inocentes seventeen years fiquei tão inebriado que mal reparei o cantor Belchior chegar para uma sessão de autógrafos de seu disco Medo de Avião. E ele, de tão mal à l'aise que estava, veio me perguntar o que eu ouvia visivelmente extasiado. Ângela Ro Ro, respondi colocando os fones nos ouvidos dele. Tão blues, exclamou com sua voz grave, um tanto alto para o ambiente e todos à volta olharam. Era o que eu estava pensando, falei. Esse encontro com Belchior teve uma sequência que vale um outro post... Mas hoje, aqui nesse post, quero falar de Johnny Hooker e de Simone Mazzer. Tão blues, os dois. E tão atuais. Ele, algo meio Cássia Eller, meio Cazuza e Sandra Sá. Ela, algo meio Cida Moreira. Ambos teatrais, exagerados, abusados e embebidos do clima de cabaret. Fico feliz de encontrar no presente gente, digo, artistas, com minhas referências. Do passado ou de hoje. Ou de amanhã, não importa. O que importa é a sintonia. Quando eu tinha dezessete, Ângela Ro Ro e Belchior já deviam ter quase quarenta. E, mesmo assim, estávamos ligados no blues... Como estou até hoje e estão também esses novos talentos da música brasileira. Vale conferir: Johnny Hooker e Simone Mazzer. Tem tudo no youtube, grátis. Se, como eu, você prefere comprar, tem no itunes também. Os álbuns tem nomes sugestivos: O de Simone chama Férias em Videotape e o de Johnny, Eu Vou Fazer uma Macumba Pra te Amarrar, Maldito! Termino citando Elis, ou melhor, Suely Costa e Vitor Martins: "Ontem de manhã quando acordei, olhei a vida e me espantei. Eu tenho mais de vinte anos. Eu tenho mais de mil perguntas sem respostas. Estou ligado num futuro blue"... É isso aí! Não vejo a hora de vê-los em cena, ao vivo.
Nas fotos, Johnny e Simone.
Nas fotos, Johnny e Simone.
domingo, 12 de julho de 2015
TAPA DE LUVAS
Dois belos textos de Jean Genet estão em cartaz no teatro da Aliança Francesa aqui em São Paulo, dirigidos por Eduardo Tolentino com o Grupo Tapa: As Criadas, com elenco feminino, e Esplêndidos, com elenco masculino. Duas belas oportunidades de se assistir a bons textos encenados de maneira competente, o que por si só já valeria a pena. Mas tem mais: O talento das atrizes de As Criadas e a beleza da encenação de Esplêndidos. Aliás, as duas encenações são belas. E os meninos não deixam por menos. O pacote todo está em cartaz de quinta a domingo. Eles às quintas e sextas e elas, aos sábados e domingos. Como nos velhos tempos em que companhias apresentavam seus repertórios. Acho chique. Digno, mesmo. Me faz lembrar a Comédie Française... Ah! E Esplêndidos traz um plus: Os belíssimos atores recebem o público já em cena, dançando um sensual tango vestindo black tie. Vale conferir. O Tapa é com luvas. De pelica...
Nas fotos, os gângsters de Esplêndidos e Clara Carvalho em As Criadas.
Nas fotos, os gângsters de Esplêndidos e Clara Carvalho em As Criadas.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
JULHO INSANO
Oi Julho! Tudo bem com você? Nossa, como você chegou depressa. Veio de avião, né? Menino, eu não estava esperando você para agora. Achei que ainda ia levar mais um tempinho, afinal, para mim, o ano acabou de começar... Mas, enfim, hoje em dia está tudo passando cada vez mais rápido. Quando a gente vê, já foi. É como cantava a Fafá de Belém: Horas, dias, mêses se passando e nesse passar uma ilusão guardei... Outro dia alguém me falou que já faz seis anos que o Michael Jackson morreu e eu fiquei bobo! Juro que pra mim fazia uns três, quatro anos no máximo... E você chegou trazendo frio, chuva, gripes, resfriados, viroses. Eu mesmo tive uma virose/resfriado que foi se complicando até virar uma sinusite que obstruiu completamente meu ouvido esquerdo. Agora estou de molho, fazendo um tratamento à base de antibióticos, coisa que há muito não fazia... Mas a vida segue e você trouxe também a minha volta aos palcos! Sim, já na próxima terça, dia 7, reestreio o espetáculo Homens Insanos no Teatro Augusta, aqui na capital paulista, sob a direção de Grace Gianoukas. Reestreio é maneira de falar. Será praticamente uma estreia, pois vem reformulado, com novo roteiro e contando com a ilustre presença de Wandi Doratiotto no elenco antes formado por Arthur Kohl, Renato Caldas e eu. Wandi entra no lugar do Renato e traz toda a sua bagagem musical. Isso me dá a oportunidade de fazer uma das coisas de que mais gosto em cena: Misturar humor & música. Acho que vai dar samba... Portanto, mês de julho, ainda que antes da hora, seja bem vindo assim mesmo. Há belezas e prazeres que só você é capaz de proporcionar. Como os belíssimos ipês floridos que enfeitam a cidade nessa época do ano. É só estar aberto e esperto para perceber e apreciar! E agora deixa eu ir, me preparar para recebê-lo melhor... Ah! E não deixem de ir conferir, todas as terças-feiras de julho, Homens Insanos no Teatro Augusta.
Na foto, o Cigano Igor Magal, um dos personagens do espetáculo.
Na foto, o Cigano Igor Magal, um dos personagens do espetáculo.
terça-feira, 30 de junho de 2015
WHAT HAPPENED, MISS SIMONE?
Acabei de assistir ao tocante documentário What Happened, Miss Simone?, do Netflix. Desnecessário dizer que fui às lágrimas? Não, totalmente necessário. Como necessário também é que se assista a esse filme tão revelador da artista quanto da mulher e do ser humano por trás da obra. Por trás, não. Por todos os lados. A Nina que luta pelos direitos civis e contra a segregação racial é indissociável da Nina Simone que sobe ao palco, toca piano, canta e grava discos. Quando, em 1991, assisti ao concerto dela em Paris e a vi ser ovacionada em pé pela plateia do Olympia lotado, que a fez retornar para infindáveis bis, nem de longe suspeitava dos perrengues que a estrela do jazz já estava vivendo. E é isso que me faz chorar. Estrelas dessa grandeza não mereciam passar nem metade, sequer um terço do que passaram em vida para, depois da morte, brindar a eternidade com suas obras imortais. E mais triste ainda é constatar que, malgré todos os seus esforços, e de tantos outros, muitas formas de preconceito e segregação ainda permanecem. Será que um dia o amor vai de fato vencer? Felizmente, tudo o que Nina Simone fez, gravou, tocou e cantou permenece e sempre será um deleite ouvi-la. Eu, pelo menos, não me canso de escutar. Viva Nina Simone!
sexta-feira, 19 de junho de 2015
GOODBYE, MR. PRESIDENT
Eu sempre fico triste quando um teatro fecha. Mas, pelo menos, passo em frente ao prédio e nutro a secreta esperança de que um dia ele reabra. Quero dizer, que reabra como tal. Não como igreja, evidentemente. Agora, quando fico sabendo que um teatro será demolido, aí é fossa braba. Fico para morrer. Essa semana recebi um e-mail de meu amigo Eduardo Serrano com a matéria da Zero Hora em anexo, relatando a demolição iminente do Cine Teatro Presidente, em Porto Alegre. Depois vieram os compartilhamentos nas redes sociais e a coisa me pegou valendo. Já falei aqui no blog da minha relação com o extinto Teatro Leopoldina, também de Porto Alegre, e da importância que ele teve na minha formação. Na ocasião eu dizia que o Leopoldina era a minha fábrica de sonhos. Pois minha fábrica de sonhos tinha uma filial: O Teatro Presidente. Lá tive a oportunidade de assistir a espetáculos inesquecíveis e definitivos como Patética, com Lilian Lemertz, É, com Fernanda Montenegro e Quarta-feira Sem Falta Lá Em Casa, com Eva Todor e Henriette Morineau. Tudo graças à iniciativa do meu maravilhoso professor de literatura do Colégio Mauá, cujo nome a memória insiste em me trair. Sim, porque se não fosse por nosso mestre, que levava a classe inteira ao teatro para assistir e depois debater com os artistas, eu jamais poderia entrar com meus tenros quinze aninhos em plena era da censura. E a semana seguiu trazendo lembranças. Como a da primeira vez que fui ao Presidente e quase matei Rosamaria Murtinho de susto ao sair detrás de um carro onde fiquei fazendo plantão, enquanto disparava um flash e gritava: Uma pose, Rosamaria! Nos anos oitenta o espetáculo Porcos com Asas, do Rio de Janeiro, fez longa temporada no Presidente e marcou época. E, já nos anos noventa, quando o estrondoso sucesso local Viva a Gorda lotava as dependências do teatro, me apresentei com o grupo de acrobatas da Valquíria Grehs, num mico divertidíssimo e também inesquecível. Entendo que as cidades crescem, que o velho tem de dar lugar ao novo e blá-blá-blá. Mas a preservação da memória, pelo menos arquitetônica, é muito importante para a construção de uma identidade cultural. Mas cultura serve para que mesmo? O lado bom, se é que se pode chamar assim, é que ao menos a fachada do prédio, com o painel de pastilhas, será mantida. O que é, no mínimo, revelador: Somos uma cultura de fachada mesmo... Falando nisso, alguém sabe me dizer quem é o autor daquele painel? Agradecido.
Nas fotos, a fachada do Presidente por Mateus Bruxel, da Zero Hora, e o susto de Rosamaria, por mim mesmo.
Nas fotos, a fachada do Presidente por Mateus Bruxel, da Zero Hora, e o susto de Rosamaria, por mim mesmo.
quarta-feira, 17 de junho de 2015
À L'AFFICHE
O filme Que Horas Ela Volta, de Anna Muylaert, do qual tive a honra de participar, teve pré-estreia essa semana em Paris e entra em cartaz no circuito francês a partir do dia 24/06. O filme também foi exibido no Festival do Cinema Brasileiro de Paris, no mês de abril. Queria tanto estar ainda lá para assistir! Foi por pouco, coisa de um mês, que perdi. Aqui no Brasil, só vai estrear em agosto. Meus amigos de Paris já me viram antes mesmo de eu me ver. Minha participação é pequena, mas tenho o maior orgulho de estar nele. E, cá entre nós, não é um luxo estar em cartaz em Paris? Pelo que soube, os franceses ovacionaram não apenas o filme, mas também a brilhante interpretação de Regina Casé como a empregada Val. Nos dois dias em que participei das filmagens, fiquei bastante impressionado com o que vi. Regina se transmuta na personagem. Estou aguardando com incontida ansiedade para conferir Que Horas Ela Volta no grand écran por aqui. Lá na França o filme ganhou o apropriado título de Une Seconde Mère. É aguardar para ver...
Nas fotos, o cartaz francês e selfie com Val no set de filmagem.
Nas fotos, o cartaz francês e selfie com Val no set de filmagem.
quarta-feira, 10 de junho de 2015
BONNE ANNÉE
Para João Faria
Há muitos anos trabalhando como garçom em diversos restaurantes da cidade, já estava acostumado a passar os feriados e dias santos na labuta. Para ele a noite de ano novo, por exemplo, era igual às outras trezentas e sessenta e quatro noites do ano, nas quais ele servia bem para servir sempre. Portanto, perdera o hábito de fazer ou ir a ceias, receber ou ser recebido para brindes e confraternizações. O máximo que acontecia era brindar rapidamente com os colegas na cozinha do restaurante ou ganhar o abraço de um ou outro cliente já passado em drinks. Mas dessa vez seria diferente. Sem saber ao certo se por obra do destino - não acreditava nisso - ou por mero acaso - no que tampouco acreditava - foi remanejado na escala de trabalho de modo a ter duas folgas seguidas, na noite de ano novo e na seguinte também . Seus amigos quase não acreditaram e o fizeram confirmar logo a presença na festa que iriam dar. Naquele último dia do ano acordou tarde, fumou os primeiros cigarros do dia tomando café junto à janela e só mais tarde foi às compras, pois queria levar alguma bebida e comida para a festa da noite. Às oito horas ele já estava de banho tomado, vestido, penteado e tomava um drinque para dar ânimo de sair no frio que gelava as ruas. Às oito e meia percebeu, ao olhar pela janela, que na rua quase vazia nem mesmo a prostituta que fazia ponto à sua porta estava lá. Devia estar com as amigas ou com algum cliente solitário, pensou. Às dez meia encheu-se de coragem, vestiu o sobretudo e saiu. Após descer os seis andares de escada, abriu a porta e quase tropeçou no corpo que jazia deitado em frente ao prédio. Refeito do susto, tentou acordar o homem para poder passar. E teve a triste constatação: Era um defunto. Fresco, porém defunto. A única coisa que lhe ocorreu, ao olhar para o relógio e perceber o adiantado da hora, foi ligar para a polícia. Que veio numa rapidez inacreditável. Felizmente. Não iria perder a festa. Já estava agradecendo e desejando feliz ano novo aos policiais que recolheram o cadáver quando teve a desagradável surpresa: O senhor terá de nos acompanhar até a delegacia para prestar esclarecimentos. Como assim, esclarecimentos? O que sei é que encontrei esse corpo aqui e chamei a polícia! Mas o senhor é o único suspeito. Espere aí: Os senhores acham que eu iria matar esse homem na porta da minha casa e ainda por cima chamar a polícia? Eu tenho amigos me esperando para uma ceia de ano novo, por favor, deixe-me ir, preciso andar. Inúteis argumentos. Foi na delegacia que virou a noite de révéillon prestando esclarecimentos. Quando saiu, horas depois, o que lhe restou foi abrir o champanhe e beber rua afora. No gargalo mesmo. Enquanto desviava dos bêbados que, a essa altura, já caiam pelas calçadas. Inesquecível...
Há muitos anos trabalhando como garçom em diversos restaurantes da cidade, já estava acostumado a passar os feriados e dias santos na labuta. Para ele a noite de ano novo, por exemplo, era igual às outras trezentas e sessenta e quatro noites do ano, nas quais ele servia bem para servir sempre. Portanto, perdera o hábito de fazer ou ir a ceias, receber ou ser recebido para brindes e confraternizações. O máximo que acontecia era brindar rapidamente com os colegas na cozinha do restaurante ou ganhar o abraço de um ou outro cliente já passado em drinks. Mas dessa vez seria diferente. Sem saber ao certo se por obra do destino - não acreditava nisso - ou por mero acaso - no que tampouco acreditava - foi remanejado na escala de trabalho de modo a ter duas folgas seguidas, na noite de ano novo e na seguinte também . Seus amigos quase não acreditaram e o fizeram confirmar logo a presença na festa que iriam dar. Naquele último dia do ano acordou tarde, fumou os primeiros cigarros do dia tomando café junto à janela e só mais tarde foi às compras, pois queria levar alguma bebida e comida para a festa da noite. Às oito horas ele já estava de banho tomado, vestido, penteado e tomava um drinque para dar ânimo de sair no frio que gelava as ruas. Às oito e meia percebeu, ao olhar pela janela, que na rua quase vazia nem mesmo a prostituta que fazia ponto à sua porta estava lá. Devia estar com as amigas ou com algum cliente solitário, pensou. Às dez meia encheu-se de coragem, vestiu o sobretudo e saiu. Após descer os seis andares de escada, abriu a porta e quase tropeçou no corpo que jazia deitado em frente ao prédio. Refeito do susto, tentou acordar o homem para poder passar. E teve a triste constatação: Era um defunto. Fresco, porém defunto. A única coisa que lhe ocorreu, ao olhar para o relógio e perceber o adiantado da hora, foi ligar para a polícia. Que veio numa rapidez inacreditável. Felizmente. Não iria perder a festa. Já estava agradecendo e desejando feliz ano novo aos policiais que recolheram o cadáver quando teve a desagradável surpresa: O senhor terá de nos acompanhar até a delegacia para prestar esclarecimentos. Como assim, esclarecimentos? O que sei é que encontrei esse corpo aqui e chamei a polícia! Mas o senhor é o único suspeito. Espere aí: Os senhores acham que eu iria matar esse homem na porta da minha casa e ainda por cima chamar a polícia? Eu tenho amigos me esperando para uma ceia de ano novo, por favor, deixe-me ir, preciso andar. Inúteis argumentos. Foi na delegacia que virou a noite de révéillon prestando esclarecimentos. Quando saiu, horas depois, o que lhe restou foi abrir o champanhe e beber rua afora. No gargalo mesmo. Enquanto desviava dos bêbados que, a essa altura, já caiam pelas calçadas. Inesquecível...
segunda-feira, 8 de junho de 2015
SANGUE AZUL
O filme Sangue Azul, de Lirio Ferreira, é pura poesia e emoção. E diversão, também. Fernando de Noronha, magistralmente fotografada, esbanja beleza a cores e em preto e branco. Daniel de Oliveira esbanja beleza e talento. E o universo do circo, sempre encantador, embala a história junto com a comovente trilha sonora. Milhem Cortaz arrasa como Inox, o homem mais forte do mundo. E Paulo Cezar Pereio não deixa por menos como Kaleb, o dono do circo. O tema central, a relação incestuosa de Zolah, o homem bala, personagem de Daniel de Oliveira, com sua irmã Raquel, que poderia fazer pesar a narrativa, é inteligentemente abordado pelo diretor e roteirista que torna o filme leve e delicioso de se acompanhar. Há um certo mistério envolvendo a trama, o que confere toques de surrealismo e até de um certo realismo fantástico. Tem sexo, ritmo, música, dança e números circenses. Incesto, ménage à trois e sexo gay. A melhor pedida para uma sessão de cinema. A delícia da temporada. Para se jogar sem rede...
Na foto, Daniel de Oliveira como Zolah, o homem bala, no cartaz do filme.
Na foto, Daniel de Oliveira como Zolah, o homem bala, no cartaz do filme.
sexta-feira, 29 de maio de 2015
HOMEM SÓ
No final da década de oitenta escrevi e levei à cena uma peça de teatro chamada A Mulher Só. Sou muito ligado à solidão, ela sempre me encantou como tema de qualquer manifestação artística. Das músicas de Dolores Duran, Maysa e Dalva de Oliveira ao rock de Cazuza. Passando por todos os boleros de Eydie Gormé que me foram apresentados por Tania Carvalho. Atraído por essa atmosfera, fui ao Espaço Parlapatões para conferir O Fantástico Circo-Teatro de um Homem Só, espetáculo solo do ator Heinz Lima Verde, cearense radicado em Porto Alegre que eu jurava ser gaúcho. Eu, que acabo de chegar de um mês em Paris, onde tive a oportunidade de assistir às mais sofisticadas produções teatrais protagonizadas por astros internacionais, fiquei completamente encantado por esse pequeno tesouro cênico que impressiona justamente pelo oposto do que vi no exterior: A simplicidade. O espetáculo retoma o fazer teatral na sua essência. É através da palavra e da ação que Heinz nos conduz na sua viagem pelo mundo do circo, da memória, da arte, dos artistas solitários, da solidão em si. E a gente embarca com o maior prazer nessa aventura que começa lá no Ceará e atravessa o país em direção a Porto Alegre, o lugar que ele escolheu como o mais distante da sua casa. No trajeto vamos conhecendo figuras incríveis como a Vedete Velha, o Palhaço, o Dono do Circo e o ator ele próprio, despido de personagens e máscaras, em uma entrega sincera, comovente e solitária. Conduzido pela direção impecável de Patrícia Fagundes, Heinz desdobra a cena em um leque de possibilidades: Leva a platéia do riso à emoção, passando, ocasionalmente, pela reflexão. Belíssima, para mim, é a cena da Mulher Barbada, que lança um inusitado olhar sobre a possibilidade de ser diferente em meio às igualdades dominantes. E o Palhaço Mal-humorado, totalmente do mal, que manda às favas o politicamente correto, é deliciosamente transgressor. Heinz me fez lembrar dos tipos solitários de Vicente Pereira a quem Diogo Vilela dava vida em Solidão, a Comédia, lá nos anos noventa. Na contramão da mesmice dominante, esse circo-teatro se impõe como uma bela opção de formato cênico. Só mais quatro quintas-feiras em São Paulo, no Espaço Parlapatões. Vê se não perde, por favor!
Na foto, Heinz encarna a impagável Vedete Velha.
Na foto, Heinz encarna a impagável Vedete Velha.
terça-feira, 19 de maio de 2015
DERNIER JOUR À PARIS
Detesto despedidas, mas com Paris não tem jeito. Preciso dizer-lhe adeus para sempre poder voltar... Meu último dia na cidade foi deslumbrante, com um sol que já me chamou para a rua logo pela manhã. Saí de casa com um único objetivo em mente: Me despedir. Antes que eu saísse, meu amigo Frédéric me disse para eu não ir atrás do que já vivera em Paris. Era para eu esquecer o passado e ir em busca do novo, citando um livro de Krishnamurti que acabara de ler. Apegado ao passado que sou, a princípio fiquei apreensivo. Mas logo me deixei levar pelo ensolarado dia de primavera com que Paris me acenava o seu adeus. Ou melhor, o seu até breve... Passeei muito, fiz compras - aquelas da última hora - tomei champanhe no Le Fumoir, almocei no Le Nemours, aquele café na Place Colette que está sempre cheio de gente do mundo inteiro, e tive a sorte de ouvir aquela orquestra de cordas que volta e meia está por ali... Depois encontrei com amigos para o fim de tarde no Canal Saint Martin e o jantar de despedida chez Eleonora com João, Fred, Philipe e o chef Otiniel que nos regalou com comida tailandesa da melhor qualidade. Tudo regado a muito champanhe... Agora já estou em São Paulo, de onde escrevo cheio de saudades. Adorei cada momento da minha permanência na Cidade Luz...
Nas fotos, fim de tarde no canal Saint Martin e o salão do Le Fumoir.
Nas fotos, fim de tarde no canal Saint Martin e o salão do Le Fumoir.
domingo, 17 de maio de 2015
PASSADO & PRESENTE
Ontem saí de casa logo pela manhã para ir em busca do meu passado. Queria rever os lugares onde estive com Caio Fernando Abreu aqui em Paris nos anos noventa, quando nos conhecemos, e que contei aqui no blog no post do dia primeiro de abril deste ano. Só lembrava da estação de metro: Marcadet- Poissoniers. Lá chegando, comecei a desbravar as redondezas à procura do jardim onde nos sentamos para conversar e do café onde fomos beber. Acho que encontrei os dois. O Café, pelo que pude lembrar, era o Nordsud, na Rue du Mont Cenis. E o parque, o Square Maurice Kriegel-Valrimont. Comprei um vinho e um sanduíche e me sentei naquele que acreditei ser o banco onde estive com Caio, para beber em sua homenagem... Tenho visto tantas coisas, é impressionante como Paris ainda é capaz de me surpreender. Como a sede do Partido Comunista Francês, projetada pelo brasileiro Oscar Niemayer. Ou o gigantesco pagode chinês, La Maison Loo, pertinho do
Parque Monceau, que se destaca vermelho em meio aos prédios franceses... Fui visitar a exposição de Yves Saint Laurent 1971: La Collection du Sacandale, na Fundação Pierre Berger-Yves Saint Laurent. Fazendo hora para assistir ao espetáculo Sans Valentin, uma comédia romântica gay, me deparei com o já lendário café Les Deux Moulins, que serviu de locação para o filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulin. Falando no assunto (filmes, locações), fui até a escadaria em que o personagem de Meia Noite em Paris se senta para esperar o carro que o leva aos anos loucos. Fiz foto e tudo... Sem falar no glamour vintage do restaurante Le Grand Colbert, onde comi ótimos escargots, e no belíssimo Odéon Théâtre de l'Europe, que não conhecia e onde tive o prazer de ver Isabelle Huppert e Louis Garrel arrasando sur la scène em Les Fausses Confidences, de Marivaux...
E como tudo o que é bom um dia acaba, já está chegando a hora de ir. Para terminar citando Serge Gainsbourg, je suis venu te dire que je m'en vais...
Nas fotos, o jardim onde estive com Caio, o Pagoda Paris e a belíssima sala do Odeon Théâtre, com teto pintado por André Masson.
Parque Monceau, que se destaca vermelho em meio aos prédios franceses... Fui visitar a exposição de Yves Saint Laurent 1971: La Collection du Sacandale, na Fundação Pierre Berger-Yves Saint Laurent. Fazendo hora para assistir ao espetáculo Sans Valentin, uma comédia romântica gay, me deparei com o já lendário café Les Deux Moulins, que serviu de locação para o filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulin. Falando no assunto (filmes, locações), fui até a escadaria em que o personagem de Meia Noite em Paris se senta para esperar o carro que o leva aos anos loucos. Fiz foto e tudo... Sem falar no glamour vintage do restaurante Le Grand Colbert, onde comi ótimos escargots, e no belíssimo Odéon Théâtre de l'Europe, que não conhecia e onde tive o prazer de ver Isabelle Huppert e Louis Garrel arrasando sur la scène em Les Fausses Confidences, de Marivaux...
E como tudo o que é bom um dia acaba, já está chegando a hora de ir. Para terminar citando Serge Gainsbourg, je suis venu te dire que je m'en vais...
Nas fotos, o jardim onde estive com Caio, o Pagoda Paris e a belíssima sala do Odeon Théâtre, com teto pintado por André Masson.
quarta-feira, 13 de maio de 2015
ÚLTIMA QUARTA-FEIRA
Hoje é quarta-feira e eu só vou deixar Paris na segunda-feira que vem. Mas, mesmo assim, já entrei no clima de histeria e corre-corre dos últimos dias: Última quarta, última quinta, última sexta e etc. Quarta-feira é também o dia em que sai o Pariscope, guia com todas as atrações culturais da semana na cidade. É uma espécie de Guia da Folha, em São Paulo, só que vendido independente de qualquer jornal. Pois descobri, lendo o Pariscope, que nesse fim de semana reestreia Les Fausses Confidences, de Marivaux, que traz no elenco Isabelle Huppert e Louis Garrel, entre outros, em uma direção de Luc Bondy. Me desabalei até o Théâtre de l'Odeon e garanti meu ingresso para o sábado, no melhor clima "despedida de Paris 2015"... Minha permanência na cidade esse ano será de um mês, mas, agora que o momento de partir se aproxima, a impressão que tenho é que o tempo voou. Não posso mais vir a Paris e ficar apenas um mês. Preciso dar um jeito de poder permanecer mais tempo, pelo menos dois ou três meses. Acho que da próxima vez vou me matricular em um curso, algo que me obrigue e me permita fazê-lo. Depois de comprar meu ingresso, entrei na Notre Dame para rezar um pouco e comprar aquela vela linda que vem em um copinho e segui até o Beaubourg para ver a cidade do alto. Agora desci, me sentei aqui no café e "mando notícias nessa fita", para citar Chico Buarque.
Nas fotos, a imponente fachada do Odeon Théâtre de l'Europe, as velas da Notre Dame e Paris vista do alto do Beaubourg.
Nas fotos, a imponente fachada do Odeon Théâtre de l'Europe, as velas da Notre Dame e Paris vista do alto do Beaubourg.
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