domingo, 15 de novembro de 2015

MURAKAMI DE RESSACA

Depois de dormir não sei quantas horas, ou dias, acordei escritor. Um escritor japonês. O mais importante, expressivo e profícuo da minha geração. Eu era traduzido e lido no mundo inteiro. Um fenômeno de críticas e de vendas. Ou seja, eu teria um longo e complexo dia pela frente. Poderia ter acordado um inseto. Um rapper, uma mulher fruta. Ou, já que era para acordar escritor, que fosse um desses de auto-ajuda, sei lá, pelo menos um Paulo Coelho. Mas não. Do nada, em plena manhã, acordei Murakami. Corri para o computador, inda tonto do que houvera. A tela branca me olhava desafiadora. Onde estão meus personagens? Minhas histórias incríveis, onde se esconderam? Preciso me virar do avesso. Remexer meu passado. Acordar fantasmas adormecidos. Abrir minha mente ao extraordinário. Esse quarto banal, com cama, escrivaninha e janela não vai me levar a lugar algum. Será que tem cerveja na geladeira? Passo os olhos pela casa e encontro uma garrafa de Jack Daniels. Sirvo em um copo baixo. Desce difícil, queimando. Penso em colocar gelo e ouço uma voz sussurrando no meu ouvido: Você colocaria gelo em um vinho? Não. Pensando bem, não faz sentido. No Japão é muito mais frio, penso me desculpando. Tenho muito que viver. Que ler. Que escrever. E o meu dia de Murakami está apenas começando... Tem dois ovos na geladeira. Faço um omelete. Tenho um texto pronto que nem posso postar, pois foge completamente ao estilo. A campainha toca. Tremo. Não estou esperando ninguém. Olho pelo olho mágico. A zeladora me acena com a mão como quem diz: Eu sei que você está me olhando, abre logo. Respiro fundo e abro. Deixaram esse envelope para o senhor ontem à noite. Como já era muito tarde, deixei para entregar hoje. Obrigado. Bom dia para a senhora também. Abro o envelope e a música de Serge Gainsbourg invade o apartamento. Ne dis rien. N'aie pas peur. Um pássaro de cor estranha pousa na janela. Alguém está de gozação comigo. Só pode ser. Vou até ele, que parece querer me dizer algo. Do nono andar vejo dois rapazes sentados no muro em frente confeccionando cigarros artesanais para depois fumá-los. Não. Não é nada disso: Vi dois moleques bolando um beck. Porra. Vou voltar a dormir. Hoje eu não quero ser Murakami. Fim.

Um comentário:

  1. Bob, que texto inspirado. Tão inspirado que traduz o melhor de Murakami e apimenta com o humor de Roberto, a desenvoltura e o livre pensar. Adorei, mais Murakami na sua vida.

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