sábado, 14 de dezembro de 2019

MAIS GUARDADOS

Remexendo guardados, como sempre faço nessa época do ano, para liberar espaço, passar coisas adiante, doar ou só jogar no lixo mesmo, encontrei o texto a seguir escrito nas páginas de um caderno de notas de 1990, ano que fui morar em Paris. A leitura revela o quanto Porto Alegre já me parecia aquém dos meus desejos, sonhos e ambições...
Sem compromisso de escrever algo que valha a pena. Apenas, nesse caderno, porque é o papel que tenho em mãos para fazê-lo. Nem tudo é deserto e calor no mês de janeiro em Porto Alegre. Em meio ao costumeiro, ao quase nada de todos os dias, algumas coisas acontecem. Então passo a misturar literatura e realidade, vida real e sonho, perder um pouco a noção do que é apenas ambição e do que já se concretizou. Passou por aqui alguém muito interessante. Eu, que já estava embebido de Vampiro Lestat, viajei nessa presença encantadora, que me enlevava contando histórias de sua mãe, de sua avó egípcia, de como vieram para o Brasil, de sua vida, embriagando-me com suas mesuras, delicadezas, seu cavalheirismo. Conheci um gentleman na minha fantasia. Hoje e sempre existem bons atores fora dos palcos. Esse pode ser um deles. Da mesma forma me encanta. Mais ainda, talvez. Alguém que sabe conduzir a atenção, a atração e o desejo de outrem na sua direção é um mestre. Da sedução, que seja. Um Don Juan. Sempre desejei conhecer um. Ele não vestia capa, veludos nem rendas. Tampouco carregava uma espada. Também não tinha a menor necessidade, pois sabia ser encantador de camiseta e jeans surrados, puídos. Não subia pelas paredes. Não escalava os telhados. Mas sugava meu pescoço como se fosse um deles, um dos seres das trevas. Não me bebeu o sangue, graças a Deus, apenas cobriu-me de beijos, sua saliva a banhar-me no calor da tarde e sabor de pêssegos. Trazidos por ele para me agradar. Há certas coisas que apesar de tão inesperadas e rápidas, passam deixando marcas de coisa que aconteceu de verdade, que durou um certo tempo. Talvez por terem essa característica momentânea, por já se saberem fugazes, talvez por isso mesmo se permitam ser mais profundas, mais intensas no pouco tempo que tem para acontecer. Não sei. O bom, depois que essas coisas passam, é a sensação de felicidade que nos deixam. Parece saudade, parece um prazer solitário, secreto. Sou um pouco assim, curto mais as coisas depois que elas já aconteceram. Gostoso estar escrevendo agora que a chuva já caiu e o calor baixou a bola... 31 de janeiro de 1990.
Me agrada constatar que meu estilo de escrita já se formara.
Na foto, Tom Cruise como o irresistível vampiro Lestat, de Anne Rice.

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