domingo, 2 de janeiro de 2011


FICÇÕES II

Segunda parte das Ficções, agora escritas em abril de 1992, já de volta ao Brasil. Embora pareça estranho como primeiro post do ano novo, elas falam de uma vida nova que o personagem deseja começar quando volta ao seu país de origem. Recomeço, ano novo, vida nova.
I
O homem havia subido três lances de escadas com duas malas bastante pesadas e acabara de entrar no apartamento quando escutou, vindo da rua: Pare em nome da lei.
Tarde demais. O prédio estava cercado. Crianças com revólveres e metralhadoras de plástico, tartarugas ninjas, formavam uma corrente e já estavam ameaçando escalar o edifício. Fechar as janelas, colocar uma música no volume máximo, algo capaz de o transportar para cidades distantes ou, ao contrário, abrir as janelas à invasão, ao recomeço, à chegada? Tanta coisa pra ser resolvida em meio à lembrança de flores no chão, de navios, de templos, de anéis de caveira, de jeans surrados, de portas de cafés, paletós pretos, o pequeno frasco com odor desconcertante, as dores de cabeça, as noites sem dormir, os anti-distônicos, os excitantes, os passeios noturnos de automóvel, as torres iluminadas, os telhados, os telefonemas, as brigas, boates, viajens, aeroportos, estações de trem, caronas, carimbos em passaportes, museus, teatros, discussões, perdas de paciência e de auto-controle, de identidade, a felicidade, o amor, o sexo com risco e sem risco, as saudades de casa, da infância, as descobertas, o inesperado,o insuportável, o subjuntivo en français, os passeios de bateau mouche. Seria pedir demais reaver tudo isso, seria pedir de menos esquecer tudo isso, seria difícil demais conviver com tudo isso, seria duro demais agora perder tudo isso. O homem não tinha mais nada. O seu presente era um passado próximo, imperfeito. E a idéia era recomeçar um futuro simples. Ouviu, ainda, vindo da rua: Corra que a polícia vem aí! Não tinha pra onde correr. Não tinha vontade de recomeçar.
II
O homem olha para o horizonte. Agora do outro lado. Ele atravessou o mar, mudou de continente e o que vê é a mesma linha que separa tons de azul, o que sente é a mesma urgência de transformar o seu momento, o que o faz chorar é a mesma história de amor mal acabada. Ele agora passeia pela calçada branca e preta de uma avenida à beira mar. Desfila a solidão masculina à beira da crise e do carnaval. Do terraço à beira mar ele assiste a um tiroteio subsequente a um assalto a banco. Com mortes, prisões e gritos dos moradores, suspensos nas sacadas dos edifícios, seus camarotes de frente pro caos. À noite no mesmo terraço ele perde o sono e contempla a lua sobre o mar, navios passando ao longe, ecoam na sua memória os tiros que não disparou e os que recebeu indiretamente, disfarçados em desencontros, discussões e mentiras. Coisas vividas além-mar. A sua vontade era cruzar de novo o oceano. Na verdade ele gostaria de poder cruzar o oceano de um lado para o outro sempre que sentisse vontade, toda vez que estivesse com medo, cada vez que a saudade batesse, se por mais não fosse para rever lugares, paisagens, pessoas, conversar em outro idioma, estabelecer contatos utilizando-se de um outro código cultural. Sábado de tardezinha. O som na vitrola é pop. A letra da música é triste. A bebida do copo é uísque. Ele está sozinho e de frente para o mar. O mesmo atlântico mar que ele via do outro lado, lá em baixo a calçada branca e preta que orna uma baía de luzes, avermelhada pelo sol que se põe, vermelho de paixão e morte, suor e sangue liquidificados, amálgama amargo de tez tropical. O mesmo mar talvez contemplado da mesma rua por que escritora sem sono, por que pessoa noturna em pé no terraço fumando, deixando o tempo passar, passando a noite de frente para o mar.
III
Manhã branca e fumacenta. Uma espécie de nevoeiro somado ao tempo nublado tornava o dia pesado e quente. Sobretudo, melancólico. Havia, perdido em meio à neblina, um homem tentando divisar o seu momento. Os dias nublados, com nevoeiro, costumavam propiciar o tédio, a melancolia, talvez por dissiparem tentativas de visão à distância, do tipo fazer planos para o futuro, preparar o amanhã. Ele estava tentando afastar a neblina do seu momento, o seu presente de homem só. Que acordou triste no meio de uma manhã branca. Ele não estava interessado na conversa do bombeiro que consertava o cano da pia, na conversa da vizinha pendurada na janela, nada de cotidiano e aparente. O que o intrigava na manhã nublada era justamente o que estava por trás do nevoeiro, a sua realidade interior, impalpável, ele se exigia e se questionava no calor branco da manhã. Queria ser denso e profundo como a neblina, desvendar os seus mistérios e viver plenamente o que havia por trás deles. Sabia que esse fenômeno exterior era provocado pela baixa temperatura da água do mar em contato com o calor do ar. O que havia de indecifrável na brancura da manhã era esse fenômeno interno provocado pelo dia. Estranheza. Por vezes o homem percebia com perfeita nitidez o que buscava. Então sentia medo. Sentia-se pequeno e impotente diante da imensidão das coisas que o cercavam. Percebia-se frágil e desacreditado de si. E tudo o mais que cotidianamente o atormentava, seu último amor, as viajens, cafés, desencontros, brigas, pareciam pouco, pareciam nada, via sua vida griando em torno de banalidades, entardeceres de frente pro mar, cigarros, uísque, discos pop de música triste, beijos na boca, boates e discussões. Não era nada disso, era mais o que buscava, o que queria e projetava na neblina da manhã. Ria consigo mesmo ao perceber-se mais uma vez confuso, perdido, triste e questionador. Sabia que isso já fazia parte da sua vida como gel no cabelo, filas em aeroportos, anti-distônicos e portas de cafés. Talvez com o passar do tempo, mais tempo ainda, viesse a saber como manejar tudo isso em proveito próprio, por enquanto só sabia reconhecer o caráter transitório dessas oscilações, essas mudanças de estados de alma. Sabia, contudo, que nevoeiros se dissipam e que o sol volta a brilhar. E que quando bronzeasse seu corpo estendido ao sol vendo as ondas quebrarem na praia, navegaria por outros estados de alma, outras verdades internas que o ajudariam a dissipar mais tranquilamente os próximos nevoeiros... Ler livros, também ajudava, ir ao cinema também. Estava disposto a encarar tudo e, ao mesmo tempo, sentia um medo incalculável do que estava por descobrir. Quando deu por si o nevoeiro já havia se dissipado. E foi para a rua disposto a recomeçar.

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