domingo, 27 de dezembro de 2020

RÉVEILLON

(Encontrei esse conto - de 1987 - inacabado em meus guardados. Resolvi terminá-lo agora e postar aqui.) Na penúltima noite do ano descolei 1g de cocaína. Importante ter cocaína na penúltima noite de um ano em que provavelmente estaria sozinho na última noite. Depois de um certo tempo – champanhe no gelo – ele chegou. Muita conversa entre bolhas, discos e pó de champanhe. E aquele desejo de ver o líquido se espalhando, as bolhas nos pelos, molhando o tapete...Assim como veio se foi. Montado na minha vespa deixei-o à porta de sua casa, me vendo partir com olhos tristes & coração descompassado. Era o fim do começo da noite. A penúltima do ano. Vento quente no corpo em movimento. Uniformemente acelerado... Uísque e fumaça no bar vazio. Tempo. Eu cheio do vazio do bar cheio. Um olho bate no meu. Mais uísque entre conversas sem sentido, segundas intenções seguidas de corridas de vespa pela noite da cidade, em direção aos prazeres do sexo. Morava num edifício da Avenida Ipiranga, um JK vazio com vista para as luzes brilhantes da noite. Dormiu ao meu lado, o rádio ligado, depois de transar. Verbo intransitivo. Pé ante pé, fechei a porta devagar, para não fazer barulho... Porto alegre não fazia jus ao nome. Andava sendo, no máximo, um porto melancólico. Ou um porto vazio. Alegre, definitivamente, não... O ronco do motor da vespa em movimento rasgava a Avenida Independência de alto a baixo. Rua da Praia que não tem praia. Pit stop na velha usina para um cigarro. Uísque na garrafinha de bolso. Fotografias embaralhadas na memória. Lembranças da pequena cidade do interior. O paralelepípedo em frente à casa tão polido que se confundia com a cerâmica do piso da área de entrada visto da porta. Pequenas observações que o pai respondia com críticas em tom de ironia. A neblina da madrugada fria envolvendo a praça em inusitado fog. Gostava quando tinham visitas em casa e tinha de dormir no sofá do escritório do pai. Bem na frente da casa, rente à calçada, vozes e passos passando na madrugada. Um certo medo de que abrissem a porta cujo trinco não fechava direito... A sombra de um presente tão incerto que se confunde com passado. Ou já teria de fato passado e agora era só memória? Do centro até Petrópolis, de lá para o Menino Deus e de novo para o Bom Fim. Isso nunca teria fim? Vontades de Avenidas Paulistas, Nossas Senhoras de Copacabana, Avenues des Champs-Élysées sufocadas no peito. Mochila nas costas, vespa na estrada, skate no pé. O jato do avião que corta o céu até se desfazer em espuma rala. O navio que cruza os mares. Movimento. Uniformemente acelerado. Em direção a. Sair da inércia, sair daqui. Rumo a qualquer lugar. Amigos partindo para outros lugares. Alguns para outras vidas. Não dava mais para ficar. O momento tratava-se de ir em frente, ir embora. Quanto vazio era capaz de conter uma cidade grande com ares de interior? Já ouvira falar de lugares ainda menores que comportavam o mundo. Expandiam horizontes, mudavam cabeças, faziam a gente crescer. Certamente mereceria ter acesso a esses pequenos paraísos. Vinha sendo bom através da vida. Da pouca vida que já tivera, pouco mais de uma vintena de anos... A professora de história do ginásio era a única pessoa da cidade que já tinha ido à Europa. Isso era tanto para a sua infância que mal conseguia conceber. Será que um dia iria também? E para quais países? A Grécia sim, definitivamente. O berço da civilização. Paris de noites iluminadas... E a estranha sensação de já conhecer a Cidade Luz sem nunca ter estado nela? Depois de fechar cuidadosamente a porta do JK, saí numa madrugada clara, de muitas estrelas e lua, ainda um pouco descompassado. Sobrou uma linha para cheirar na noite seguinte (aquele desejo de ver o líquido se espalhando, as bolhas nos pelos, molhando o tapete) e um certo aperto no coração... Maio de 1987/ Dezembro de 2020.

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