sexta-feira, 28 de setembro de 2018

MEMÓRIA ENCENADA

Finalmente consegui preencher uma lacuna imperdoável que havia na minha formação teatral: Assistir a um espetáculo de Robert Lepage. E foi com o intrigante 887, que ele está apresentando em São Paulo, no Sesc Pinheiros, com a sua companhia Ex Machina. A peça trata da memória, esse tema que me é tão caro e do qual muito já falei aqui no blog. Lepage se lançou na pesquisa sobre os labirintos da memória justamente quando se viu em dificuldade para decorar um poema que se propôs apresentar em uma cerimônia. Quando começou sua, digamos viagem, foi imediatamente transportado para o prédio onde viveu sua infância, o número 887 da Avenue Murray, no Quebec. É claro que eu, enquanto assistia ao espetáculo, fiquei também me transportando para o 1414 da Avenida Marechal Floriano em Soledade, onde nasci e vivi minha infância, para o 1271 da Rua Garibaldi em Porto Alegre, onde passei minha juventude, e para o 18 da Rue des Écouffes em Paris, onde morei no começo dos anos noventa e vivi uma espécie de segunda juventude que dura até hoje... Enquanto escrevo já fico me perguntando como discorrer sobre tão interessante assunto sem me alongar. Lepage segue contando que se utilizou, na tentativa de memorizar o tal poema, de uma técnica na qual você distribui as partes do texto em cômodos de uma casa ou de um local do passado que se lembre com exatidão. E imediatamente me vi percorrendo ambientes da casa da minha avó, com uma riqueza de detalhes que quase atrapalhou minha atenção no espetáculo a que assistia... E quando cheguei em casa e me deitei para dormir a viagem ao passado seguiu firme e forte. O centenário de Soledade, com a inauguração do Parque de Exposições, a visita do governador, o ônibus que exibia a Mulher Tarântula da Amazônia; o Teatro Serelepe, com seus melodramas, comédias, tragédias e shows de calouros; as aulas de piano chez Dona Amélia Triches, os desfiles de Sete de Setembro, as viagens com o time de handball, a excursão a Porto Alegre com a turma da sétima série... Quem como eu trabalha com teatro sabe do constante esforço de manter viva a memória, do quanto ela é importante não só para que o espetáculo se realize, mas para que se perpetue no coletivo, uma vez que é uma arte efêmera, que só pode ser vista enquanto está acontecendo. Um dos sonhos recorrentes que tenho é que preciso entrar em cena e não sei uma só linha do texto que irei apresentar. Vocês que me leem não imaginam o pavor que isso representa para um ator... Mas, fora todo o meu interesse pessoal pelo assunto abordado por Robert Lepage em seu espetáculo, vale destacar o espetáculo em si. Uma obra-prima, uma viagem de encantamento e precisão cênica de cair o queixo. O palco como uma caixa mágica que une imaginação, poesia, efeitos tecnológicos, ilusionismo, cinema, projeções, carpintaria teatral de primeira e, acima de tudo, muito, mas muito talento. Quando a apresentação termina e ele entra para receber os aplausos, a gente percebe que, apesar dele estar sozinho em cena o tempo todo, não se trata de um solo, há muitas pessoas por trás fazendo a mágica acontecer. Cerca de dez artistas são chamados ao palco para gradecer com ele. E fazem jus ao nome da companhia: Ex Machina... Em cartaz só até domingo. Corre!

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