quarta-feira, 5 de março de 2014
CONTO SURREAL
Mais um conto dos meus vinte aninhos que encontrei remexendo guardados:
A flor no peito crescera, vinha se tornando maior a cada dia e o botão, num esforço enorme, ia aos poucos penetrando os tecidos, rompendo paredes, fazendo o possível para se abrir e expelir o seu perfume e pulsação. Do lado de fora do peito já se podia ver, entre os pelos, pequenos brotos. Pedaços de pétalas rosadas, de perfume intenso, doce, inconfundível. Já não podia vestir-se pois, se assim o fizesse, acabaria por machucar os delicados pedaços de vida que de dentro de si brotavam. Então tomava água, muita água e tomava, também, muitos banhos e sentava-se ao sol pela manhã, tomando assim todos os cuidados necessários ao desenvolvimento dessa nova vida que lhe invadira e que nem sabia ao certo do que se tratava. Valeria a pena esperar. Uma gestação. Quando enfim seu peito se abrisse poderia revelar ao mundo o seu interior, que era belo, e que permanecera fechado por tantas estações. Agora, com a chegada da primavera, já não bebia bebidas alcólicas, não fumava e tinha apenas bons pensamentos acerca do que desejava parir e sabia que seria lindo. Assim como o lírio ou violeta ou jasmim que dentro de si fecundara. A sua relação solitária, de tão bela, só poderia dar em flor. Assim pensava e cantarolava baixinho enquanto se expunha ao sol: Bem me quer, mal me quer, bem me quer, bem me quer, bem, bem, bem. Tudo aquilo que vivia era amor. O seu ser em flor contemplava os dias e se preparava para dar à luz. Até que numa manhã de verão acordou e teve uma grande surpresa: Seu peito era uma chaga já cicatrizando ao sol e a seu lado as abelhas sugavam, extasiadas, o néctar de um grande lírio já fenecendo ao calor do verão. Chorou muito e suas lágrimas eram doces. Atraíram tantos insetos que o obrigaram a jogar-se no rio. Desceu ao mundo submerso e veio à tona sob a forma de uma imensa flor aquática. Que se auto-fecundava e gerava novas flores. Para sempre...
A leitura desse conto modestamente me fez lembrar de A Espuma dos Dias, filme de Michel Gondry, baseado em romance de Boris Vian, cuja foto ilustra o post.
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