terça-feira, 3 de outubro de 2023

O VAMPIRO BORIS - PARTE I

Dia desses recebi, pelo aplicativo de mensagens de uma rede social, a notícia do falecimento de Boris. A nota não dava maiores explicações. Vinha da irmã dele, uma amiga muito querida, daquelas que o tempo guarda na memória e a gente nunca mais vê nem ouve falar. Dizia que depois de longos anos de sofrimento, de luta contra a dependência de drogas e várias doenças por elas desencadeadas, ele finalmente descansara. Assim como ela e todos os que o cercavam. A simples leitura desse nome - Boris - acendeu em minha mente a chama de lembranças há muito adormecidas... Conheci Boris, o vampiro, no ano em que completei vinte anos de idade: 1983. Por pouco eu não atingi ainda virgem a marca dos vinte anos. No limiar do ano, aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, o tão ansiosamente por mim esperado aconteceu. Melhor, acontecera. Com outro. Mas, voltando a Boris, ele não era de fato um vampiro. Era, na verdade, um garoto de vinte anos, como eu. Mas, para mim, Boris sempre foi nome de vampiro. Ele me lembrava um daqueles seres das trevas. Primeiro pelos olhos, pretos por fora e vermelhos por dentro. Costumava pintar o contorno deles com cajal preto forte e, como fumava muita maconha, os tinha invariavelmente vermelhos na parte interna. Se ainda hoje meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer (para citar Caetano) imaginem aos vinte anos. Segundo, pelo fato de me sugar por completo. Me tinha em suas mãos. Muito mais vivido e rodado na quilometragem (apesar de termos a mesma idade), me manipulava com natural esperteza e dissimulada cafajestagem. Eu, que dava os primeiros passos na malandragem e boemia da vida, com a cabecinha cheia de fantasias românticas, narrativas açucaradas e desfechos heteronormativos, era presa fácil, facílima para a sanha desenfreada do meu amante algoz... O conheci por um daqueles acasos totalmente inesperados que a vida nos apresenta. Daqueles que o tempo revela não terem sido acaso nenhum. As férias de verão já tinham acabado e eu havia retomado a minha entediante rotina de aulas na faculdade de História, que sonhava abandonar para cursar Artes Cênicas, minha verdadeira vocação. Uma amiga me convida para irmos passar um feriado prolongado na praia, em Santa Catarina, onde a esperava uma ficante cujo irmão iria conosco no mesmo ônibus. Nos encontramos na rodoviária e, quando adentramos o ônibus, ele já nos esperava devidamente instalado no banco ao lado do meu. Faíscas, tremores, arfares. Meu coraçãozinho neófito quase arrebenta de tanto bater. Movimento retilíneo uniformemente acelerado. Conversa vai, conversa vem, antes da metade da viagem já estávamos nos atracando no banco do ônibus que tinha ficado pequeno para tantos braços, abraços, entrelaçamentos arfantes e sensuais... Ainda não havia para mim Anne Rice, a tua mais completa tradução: O Vampiro Lestat. Foi mais tarde, no final da década, que vim a conhecer essa intrigante autora de romances cujos protagonistas se alimentam de sangue humano ainda quente. Quando, nas noites cálidas de lua cheia do verão gaúcho, eu me perguntava onde Boris estivera naqueles anos todos em que não nos conhecíamos, mesmo morando em bairros próximos da mesma cidade, não deixava de considerar a possibilidade de ele ter passado os últimos cem ou duzentos anos vivendo em estado vegetativo, sob a superfície da terra, se alimentando de pequenos roedores; e, atraído por sons amplificados de rádios, televisores, guitarras elétricas e melodias complexas como a Arte da Fuga, de Bach, tal como o personagem dos romances de Rice tivesse voltado à superfície justamente na Porto Alegre dos anos oitenta por mim habitada... Continua no próximo post.

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