quinta-feira, 14 de setembro de 2023

PÁSSARO DA MANHÃ

Quando eu tinha catorze para quinze anos me mudei de Soledade para Porto Alegre para fazer o segundo grau (não sei como se chama hoje) num colégio da capital. Meus pais, que investiam tudo no nosso bem maior - nossa educação - faziam questão de que nossos estudos fossem feitos nas melhores instituições de ensino. E nesse quesito, Porto Alegre dava de dez na nossa provinciana e amada cidade natal. Mas já estou me desviando do assunto, que vem a ser o matinal pássaro de Maria Bethânia. Quando cheguei em Porto Alegre, minhas irmãs haviam assisitido recentemente ao show de Bethânia no Teatro Leopoldina e já tinham o LP de mesmo nome, o dito Pássaro da Manhã. Eu, que desde pequeno adorava ouvir música (ficava até tarde da noite escutando a rádio Farroupilha no rádio da Variant do meu pai estacionada em frente à casa ou no meu radinho de pilha da Luluzinha) me tomei de amores por Bethânia, aquela entidade mística e misteriosa, e seu encantador disco recheado de hits e curiosidades. Quando ainda estava morando em Soledade lembro de ver na TV a propaganda do show, em que ela aparecia cantando um trecho da canção Um Índio, de Caetano: "num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, do objeto sim resplandescente descerá o índio"... Minha paixão foi instantânea. Decorei todas as canções e também os textos que Bethânia recitava. Eu já era apaixonado por Olhos nos Olhos, de Chico (hit do álbum anterior, Pássaro Proibido) que era uma das mais tocadas na Rádio Farroupilha. Não sei descrever exatamente o que significava, à época, o lançamento de um novo LP de um dos nossos ídolos. Era uma espécie de pacote surpresa, que a gente aguardava ansiosamente pela chegada e, quando chegava, estava repleto de referências, memórias, identificações e marcas que ficariam para sempre em nossas vidas. O que seria hoje o correspondente? Acho que não existe mais algo tão repleto de significado. O conteúdo, a qualidade das letras e melodias, a excelência vocal, tudo isso se perdeu. Claro que temos, por exemplo, a graça de Marina Sena cantando "ai que delícia o verão, a gente queima o ombrim, a gente brinca no chão", ou Jão a insistir no já batido "gosto de meninos e meninas" requentando Renato Russo (preguiça total). Mas algo como Gonzaguinha, Milton, Chico, Caetano, Fagner, João Bosco, Djavan, Toquinho e Vinicius, sorry, não tem mais... O Pássaro da Manhã trazia textos de Fernando Pessoa, Fauzi Arap, Clarice Lispector e da própria Bethânia. Além dos hits Terezinha e O Que Será, de Chico Buarque, Um Jeito Estúpido de Te Amar, de Isolda, e Tigresa e Gente, ambas de Caetano. Sem falar em Começaria Tudo Outra Vez, de Gonzaguinha. E os arranjos? Meu Deus, que lindeza. E as fotos de Marisa Alvares de Lima? Um deslumbramento. No encarte, uma foto de Bethânia de terninho branco e gravata de pérolas cercada de arranjos de flores brancas... Estive uns dias junto ao mar e, como sempre faço, ouvi bastante esse álbum no Ipad. E a memória me trouxe tudo de volta...É isso, sigo ouvindo Bethânia e seus chiquérrimos pássaros (da manhã e proibido) e também seus dramas. Para haver algum luxo, por Deus! Que eu também preciso. Amém pra todos nós... Nas fotos, a capa do álbum e do encarte por Marisa Alvares de Lima.

Nenhum comentário:

Postar um comentário