segunda-feira, 7 de setembro de 2020

LINA FALA

Que bom que o mês de setembro chegou. Para mim setembro é um mês que traz bons augúrios, a perspectiva de renovação, as flores, a primavera, a proximidade das festas de fim de ano... O feriado da independência fazia a segunda-feira parecer um domingo. O calor, impensável nessa época do ano, fazia o inverno parecer verão. Lina, minha gata, estirada sobre as pedras frias do chão, olhava incrédula para a piscina do prédio, cheia de incautos condôminos que se aglomeravam sem máscaras de molho nas suspeitas águas. De tempos em tempos ela me encarava como a me perguntar: O cloro imuniza as pessoas do vírus? E emitia um miado longo, cheio de nuances de entonação, como se conversasse comigo na língua dos gatos. Quando cansei dessa incomunicabilidade, olhei firme nos olhos dela e perguntei: -Por que você não fala comigo na minha língua? Assim talvez eu pudesse saciar a sua curiosidade. Quase caí para trás quando escutei do nada: -Que gente sem noção! - Oi? Quem disse isso? -Eu, ora. Você não pediu para que eu falasse com você na sua língua? A sua língua, que eu saiba, é o português. Ou estou errada? -Não, Lina, pelo amor de Deus, você está certíssima, respondi ainda incrédulo. E ela prosseguiu: -Ando observando que vocês humanos tem sérias dificuldades de se relacionar com os problemas. De viver em comunidade. De pensar no coletivo. Sim, sim, concordei com um gesto de cabeça. E ela: -Aquele dia que vocês me levaram para passear de carro fiquei observando enquanto passávamos pelo Minhocão: Vocês constroem lindos jardins verticais nas fachadas dos prédios e deixam eles morrerem por falta de manutenção! Qual o sentido disso? Vi pessoas andando nas ruas com as máscaras no queixo. Ou com o nariz para fora. De que isso serve em tempos de pandemia? Engoli em seco pois, apesar de Lina estar falando a minha língua, eu sinceramente não tinha respostas para dar a ela. Depois de andar até a cozinha e comer um pouco de ração, ela voltou, parou bem na minha frente e mandou essa: -Quando assisto tevê junto com vocês, não pensem que não me dou conta dos absurdos que vejo. Dos políticos equivocados que vocês elegem para governá-los. De como vocês tratam a natureza. De como se matam uns aos outros em nome de Deus. Vocês devem ter um deus muito cruel. Se ele está, como dizem, acima de tudo e deixa isso tudo acontecer... E, se espreguiçando devagar, subiu na mesa e se aninhou sobre a capa do laptop onde adormeceu sem mais palavras. Fiquei atônito olhando as famílias na piscina. Percebi que entravam na água sem antes tomar a ducha. E a tarde de domingo, digo, segunda, findou como se nada estivesse acontecendo. Como se lá fora não houvesse uma pandemia. Como se aqui dentro uma gata não tivesse falado comigo...

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