Acordou passava do meio-dia. O calor de quarenta graus fazia a cidade derreter. Porto Alegre sempre foi um forno no verão, pensou, a cabeça pesada de ressaca. No videocassete o filme de Jim Jarmusch, Stranger Than Paradise. (Não esquecer de rebobinar a fita antes de devolver para a locadora). Será que a Vespa está na garagem? Por Deus, não lembrava de na-da. Sim, constatou depois de ver pela janela, estava lá, estacionada na vaga. Tudo correra bem... Ou, pelo menos, quase tudo. Ou quase bem... Ocidente lotado, incontáveis gin-tônicas, a Gorda vestida como a Madonna, Paulo Vicente de maiô e estola de pele, procura-se Suzan desesperadamente! Aos poucos começava a lembrar: A festa na casa da Martinha! Tinha tomado um hipofagin antes daqueles uísques todos... Talking Heads, Laurie Anderson, The Cure, o pó mocosado na folhagem da portaria! Será que ainda está? Tinha certeza que entre uma aula no prédio antigo do DAD e o ensaio na cúpula da Engenharia guardara lá... Aff! Ressaca assim só depois daquela noite no Esperança, o bar do Java na Fernandes Vieira. Ou seria na Felipe? Que depois de uma rodada de beijos foram todos esticar na casa do Leandro. Quem tinha ido, mesmo? Não importa. O Leandro era namorado do seu melhor amigo e pegou super mal. Uma saia justa de couro. Sem forro... Restos de gel purpurinado grudavam o cabelo na nuca. Olhando no espelho pensou: Ligo pro Walter assim que voltar ao normal. Preciso passar hoje mesmo no Scalp pra dar um jeito nesse cabelo. Entre a aula de dança na Choreo e o show do Mareu. Onde é que guardara o retrato em monóculo que a Rochelle fez dentro do caixão do Beijo Ardente? A década inteira passava na sua cabeça: Mil novecentos e oitenta, oitenta e um, oitenta e dois, oitenta e três... Quatro , cinco, seis, sete... Em que ano a Gorda de Madonna? As festas da Martinha, quando foram os Talking Heads? A Vespa na garagem, os ensaios do Tear, o Esperança, a video-locadora, o Leandro... O Ocidente a década inteira, do início ao fim, isso era certo. Meu Deus, que ressaca! Ressaca de uma década. Depois Cazuza morreu, ele foi morar em Paris, os noventa foram chegando e, de repente, tudo já era passado... Nunca mais quatre-vingt!
Na foto, minha tentativa de digitalizar o monóculo de Rochelle Costi.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
TAXI
Saiu da boate entre bocejos, tragadas e goles. Foi o tempo de atravessar a rua, acenar e entrar no taxi que passava. Livre, graças a Deus. Percebeu pelo luminoso aceso em cima do carro. Afundou no banco traseiro enquanto dava a direção a seguir. Quando o taxi cruzou a Paulista de ponta a ponta, do Paraíso até a Consolação, o relógio digital no alto do Conjunto Nacional marcava quase quatro horas da manhã. Vinda do rádio, a voz de Baby Consuelo soava como uma última possibilidade de esperança: Eu queria tanto encontrar você... Olhando as pessoas que passavam a pé pela avenida era fácil distinguir quem estava saindo de casa para trabalhar de quem voltava pra casa depois de uma noite de festa, dança, bebida, incontáveis cigarros e interminável busca. Cai, cai aqui na minha mão. Eu não vou deixar cair, não... Na memória da retina as luzes ainda piscavam fortes e na cabeça, pulsava retumbante a batida da música eletrônica, remixando o auê com você de Baby Consuelo. Do Brasil, lembrou num esgar. Consuelo era tão melhor... Os últimos goles da última cerveja antes de pagar e descer do táxi em frente ao hotel. Só nos filmes as pessoas descem primeiro do taxi e pagam depois, pensou. Ou lembrou, como em um flash. O motorista arrancou e ele, parado à porta do hotel, ainda escutou, vindo do rádio do taxi que se afastava: Você voa no céu feito gaivota. Você é um passarinho... Deitado sozinho em seu quarto de hotel, olhava pro teto quando pensou: Isso já foi há tanto tempo. A boate da Brigadeiro nem existe mais. Como era mesmo o nome? Diesel? Base? Deixa pra lá...
terça-feira, 14 de outubro de 2014
SEM PALAVRAS
Outubro já está na metade e eu apenas chegando ao segundo post do mês. É raro de acontecer, mas às vezes é exatamente assim que me sinto: Sem palavras. Ontem fui assistir ao belíssimo filme Atilla Marcel, de Sylvain Chomet, no qual o protagonista, Paul, só pronuncia uma única palavra: Papai. E o filme acaba. Fiquei impressionado com a atuação daquele jovem ator francês, Guillaume Gouix, que passa pelas mais variadas emoções ao longo da história sem pronunciar uma só palavra. Aliás, só uma. Un seul mot: Papa. Acho que o filme me tocou justamente por esse detalhe: A ausência de palavras do personagem. E me refiro aqui, no meu caso, à palavra escrita. Pois, felizmente, falar eu continuo falando. Pouco. Mas falo. Acho que estamos vivendo um momento em que tudo é dito demais, falado demais o tempo todo. A própria Clarice Lispector, hoje tão citada pelos que tem muito a dizer, já declarou: "Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio". Eu modestamente venho dizendo há um bom tempo que silêncio em si é um artigo de luxo. E não apenas o silêncio externo, real. Mas o interno, também. O silêncio da alma. Fiquei lembrando do impressionante monólogo sem palavras Depois do Expediente, a que assisti aqui em São Paulo, nos anos oitenta, com a maravilhosa e saudosa Ileana Kwasinsky... A gente ouve tantas coisas, lê tantas coisas o tempo todo, recebe tanta informação, útil ou não, que se perde no alarido geral. Quero dizer que estou em crise de escrita. As palavras me escapam. Adoro dizer isso em francês: Les mots m'échappent... E é bom que assim seja, de vez em quando. Até que essa crise passe, talvez eu não escreva mais nada aqui. Não farei críticas nem elogios. Não reclamarei de ninguém nem de nada. E, sobretudo, não tentarei convencer ninguém a votar no mesmo candidato que eu. Que pra isso já basta o Facebook. E deixa eu parar por aqui porque, para quem está sem palavras, já estou escrevendo demais. Estou parecendo o filho de um famoso casal de atores que foi na estreia do musical de sua mãe, postou uma foto no instagram e escreveu: "Sem palavras para a estreia da minha mãe, etc, etc, etc..." e seguiu transformando em extenso parágrafo o que deveria ser apenas a legenda da foto. Eu ri imaginando o que ele escreveria se estivesse COM palavras... Bom, agora chega! E até, quem sabe, novembro! Enquanto isso, não deixem de assistir ao intrigante Atilla Marcel.
Na foto, o silêncio cheio de palavras não ditas de Guillaume Gouix.
Na foto, o silêncio cheio de palavras não ditas de Guillaume Gouix.
quarta-feira, 1 de outubro de 2014
PARA SEMPRE TEU, CAIO F.
Adentro o mês de outubro no maior estilo, indo para o Rio de Janeiro para a exibição do documentário Para Sempre Teu, Caio F., de Candé Salles, inspirado no livro homônimo de Paula Dip, do qual tive a honra de participar como ator. O filme reúne depoimentos de amigos do escritor Caio Fernando Abreu, imagens do próprio Caio e atores interpretando os seus textos. Já contei aqui no blog, no post 15 ANOS, mas a importância da ocasião exige replay: Conheci Caio no começo dos anos noventa, quando morava em Paris, através de um grande amigo em comum, Luiz Arthur Nunes, que anteviu nossas possíveis afinidades. Eu hospedara o Luiz na minha humilde residência parisiense antes de ele ir a Londres e lá encontrar o Caio. Quando voltou para Paris, disse que tinha deixado meu número de telefone para ele, que em alguns dias chegaria na capital francesa. Detalhe: Caio era meu escritor preferido e um dos meus ídolos vivos sobre a Terra. Corte de tempo: Quase caio para trás quando atendo o telefone e escuto do outro lado da linha sua voz grave anunciando: É o Caio! Quando a gente tem vinte e poucos anos, morar em Paris já é um sonho. Imagine ter vinte e poucos, estar morando em Paris, conhecer o seu escritor preferido e ficar amigo dele? C'est inestimable... Além disso tudo e do que se seguiu por anos até a morte de Caio, muito da honra que sinto de participar desse filme vem do fato de eu estar apresentando uma faceta dele que é pouco conhecida do grande público de fãs e admiradores da sua obra: O Caio divertido, engraçado. Os amigos sabem: Ele era dono de um refinadíssimo senso de humor. E nada mais divertido do que falar bobagens "enchendo o cú de brama" na sua companhia. Pois interpreto sua Lenda das Jaciras, ou As Quatro Irmãs (Psico-antropologia Fake). Adorável desde o título, como só ele sabia ser... O texto não aparece inteiro no filme, pois a cena ficaria longa demais. Mas nas mãos de Candé ele teve uma edição perfeita, dando uma clara ideia de cada uma das quatro irmãs: Jacira, Telma, Irma e Irene. Pra quem não sabe, era assim que Caio classificava os quatro tipos de bichas existentes. Todas clássicas, arquetípicas... O filme será exibido no Festival do Rio nos dias 5, 7 e 8 de outubro. Você pode conferir horários e salas de exibição no site do festival. É isso! Bom outubro para todos. O meu está começando em alto estilo...
Na foto, colagem de Caio que ilustra o cartaz do filme de Candé e Paula.
Na foto, colagem de Caio que ilustra o cartaz do filme de Candé e Paula.
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