quinta-feira, 22 de setembro de 2022

SONHOS

Uma densa neblina encobria o quintal da casa da minha infância em Soledade. Na área dos fundos, olhei para a frente da casa e vi que o prédio do Clube Avenida estava totalmente encoberto pela neblina e chamei minha mãe para ver. Quando ela chegou, a neblina já tinha se dissipado e podíamos ver o prédio do velho clube... Cheguei na rua Garibaldi, onde morei toda a minha juventude em Porto Alegre. Ela, a rua, estava irreconhecível. Todas as casas e pequenos prédios antigos tinham sido demolidos para dar lugar a novos empreendimentos imobiliários. Os poucos terrenos ainda sem novas construções estavam tomados por traficantes e pessoas mal-encaradas, que me deram medo. Custei a encontrar o prédio onde morei, o Edifício Navarra. Ele tinha ficado tão pequeno em relação aos novos arranha-céus, que parecia uma casa de três pisos e não um edifício... Eu tinha que fazer um buquê de florezinhas amarelas com galhos daquela rúcula bem fininha. Como tinha muitos, para conseguir amarrar o buquê eu comi alguns galhos da rúcula... Eu caminhava subindo uma ladeira estreita, uma viela, conversando com alguém que não me lembro quem era. Durante a caminhada, passei três vezes pelo cabeleireiro da minha mãe. Na terceira vez eu perguntei: Como assim? Você fica indo e vindo? Ele respondeu: Não. Vocês param para conversar e eu passo. Aí vocês retomam a caminhada, me alcançam de novo e assim sucessivamente. Ele estava jovem e cabeludo como era na minha infância nos anos setenta... Estava andando de skate. De repente, chega um menino da minha infância, também de skate, fazendo altas manobras na minha frente. Então eu disse (ou pensei): Tá, mas eu aprendi a andar de skate depois de velho. Nisso, o skate escapa do meu pé e sai andando sozinho em alta velocidade. Saio correndo atrás, mas não consigo alcançá-lo. Até que vejo ele virar à esquerda numa rua e algumas pessoas conseguem pará-lo. Quando me aproximo tentando dizer que é meu, elas somem com ele. Me dou conta de que a rua é a entrada de uma favela e não vou poder fazer nada, perdi o skate. Fico com muita raiva e me lembro que o skate era chiquérrimo, do Alexandre Herchkovitch, presente de um amigo muito querido de Porto Alegre... Estava dentro de um ônibus, em Salvador, indo de um lugar para outro. De repente, me dei conta de que estava sem máscara. Pedi para descer e percebi que estava sem carteira, sem dinheiro, documentos, nada. A motorista do ônibus me acusa de ter saído sem pagar. Digo que achei que ela tinha me dado uma carona e que, mesmo que quisesse, não teria como pagar... Queria atravessar uma grande e movimentada avenida, mas não podia porque estava tudo alagado. Tinha que ficar esperando a água baixar... Estava assistindo à performance de uma cantora que, enquanto cantava, a letra da música passava pelo seu corpo, como uma projeção. Às vezes vinha um cara abraçá-la, se debruçava sobre ela e a letra ficava toda amassada. Gostei do efeito e quis fazer esse número também. Depois pensei: Pra que fazer isso se ela já faz? Tenho que fazer algo meu, original. Acho que a cantora era Marília Pera. Um outro número com um trio formado por uma mulher e dois homens também acontecia. Era uma música antiga e eles a cantavam como os antigos cantores do rádio. O chão do local era inclinado, lembrava a rampa da garagem da minha casa em Soledade... Muitos dias sem conseguir anotar meus sonhos. Um pouco antes de acordar completamente, fico meio que recapitulando o que sonhei para poder tomar nota. (Num estado de semiconsciência). Quando acordo, fica só uma sensação. O que me lembro é que, em geral, são situações em que me encontro preso e das quais não consigo sair. Mas não consigo lembrar que situações são essas. Não chegam a ser pesadelos, mas são sonhos angustiantes por estes dois motivos: Não conseguir sair das situações e não conseguir lembrar delas para anotar... Na foto, o elenco de Sonho de Uma Noite de Verão, de Shakespeare, em montagem da Comédie-Française.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

BARBÁRIE

Correndo na esteira pela manhã, a TV da academia inevitavelmente ligada em algum canal que exibe um programa sensacionalista, daqueles que escorrem sangue. Homem mata ex-mulher e filho pequeno a tiros em frente à escola da criança. Jesus, por misericórdia, me estende a mão! Me puxa ou me empurra pra frente, que tá difícil sentir ânimo de continuar diante de tamanha barbárie. Vivemos em um mundo bárbaro, cercados de barbaridades por todos os lados. O que não é privilégio de nenhum extrato social em específico, mas de todos. Da base ao topo da pirâmide. Estamos, como espécie humana, corrompidos, condenados. Contaminados, perdidos. Sem nenhuma possibilidade de redenção. Na vida real não dá para trocar de canal... Haja disposição para levantar da cama pela manhã e sair pra rua para fazer o que tem que ser feito. E quem não pode se dar o luxo desse questionamento e, antes mesmo do dia clarear, já está correndo atrás de um ônibus, para depois entrar no metrô e num trem para, finalmente, chegar no trabalho sem o qual não come nem paga as contas? Alguém me pergunta alguma coisa sobre o funcionamento da esteira, faz uma ou duas observações sobre o tempo lá fora, trocamos sorrisos. Bom treino. Volto a olhar para a TV, que agora exibe a preparação de um lombo assado com batatas e maçãs. Impossível não lembrar dos versos dos Titãs: Você vai morrer e não vai pro céu. É bom aprender, a vida é cruel... Na foto, a obra Criança Morta, de Candido Portinari.

domingo, 4 de setembro de 2022

SETEMBRO FRIO

Domingo frio. Chuvinha fina. Saí cedo de casa. Rua Augusta vazia. Avenida Paulista vazia. Metrô vazio. Me pergunto se estou mesmo em São Paulo... O Conjunto Nacional também está vazio. Como vazio – e fechado ainda, claro – está o antigo Viena, agora Ráscal, na esquina da Augusta com a Alameda Santos. Impossível não lembrar do confinamento, que esvaziou cidades mundo afora. O que gerou uma certa beleza. Triste, porém beleza. No filme francês Mais que Amigos: Vizinhos, por exemplo, que se passa durante o lockdown, vemos imagens de Paris completamente deserta que são de tirar o fôlego... Que saudade me deu de curtir o frio no sul. Rever Porto Alegre, Soledade. Tomar chimarrão, comer bergamotas, beber um bom vinho... O inverno começa a se despedir para dar lugar à primavera, toda florida e auspiciosa. E quando ela chega, vocês já sabem: É dois, três e acabou o ano. Busco então minhas memórias do frio, para fazer durar mais um pouco a estação mais glacial do ano que, para nós tropicais, nem chega a ser tanto: A sopa servida no grupo escolar na hora do recreio. Lembro até hoje do cheiro e do gosto. O chão branco de geada de manhã cedo indo para a escola. O pinhão assado na chapa do fogão à lenha e depois maceteado com o martelo (Meu Deus, por onde andava o verbo macetear??). Sem falar nas noites frias, melhor dizendo geladas, na praça de Soledade com os amigos. Nem o rigor do inverno nos fazia ficar em casa. (Ah, a juventude!). De Porto Alegre também guardo na memória diversos invernos. Um pouco mais amenos que os de Soledade, diga-se. Madrugadas de boemia e – pasmem! – cerveja gelada. Não admira que eu vivesse com crise de rinite e bronquite... A lareira acesa na casa dos meus pais. Todo mundo assistindo televisão debaixo de cobertores. Pores de sol gelados, tanto em Porto Alegre quanto em Soledade, trago muitos comigo. O post, que inicialmente era uma tentativa de saudar a chegada do mês de setembro e da primavera, enveredou por searas geladas que me levaram à mais tenra idade. Coisa boa a memória conservar lembranças, ainda que congeladas. Esse texto funcionou como uma espécie de micro-ondas que as deixou fresquinhas para serem compartilhadas com vocês... Me trouxe também a lembrança do livro Neve na Manhã de São Paulo, de José Roberto Walker, que aproveito para indicar a leitura. Ótimo mês de setembro a todos! Na foto, Sampa fria e deserta na manhã de domingo.