terça-feira, 6 de maio de 2025

HOMEM COM H

Me deixei levar pelo filme Homem Com H, cinebiografia de Ney Matogrosso com roteiro e direção de Esmir Filho, como quem embarca em uma viagem ao próprio passado. Como quem folheia um álbum de fotografias. Era a minha infância que eu via projetada na tela do cinema. Traduzida em sons e imagens. Logo no começo Ney aparece cantando no coral de que participava a canção Casinha Pequenina. Foi a música que toquei na minha primeira audição de piano no colégio das freiras em Soledade. Eu teria nove anos no máximo e tremia como vara verde. Mas nunca esqueci... A linda canção na voz de Ney abriu um portal sem volta para mim. O filme me abduziu. Não tenho críticas, só elogios. A interpretação de Jesuíta Barbosa encanta nos mínimos detalhes. Olhares. Gestos. Silêncios. Respirações. O personagem lhe caiu como uma luva. A direção de Esmir Filho, solar, moderna, traz à tona todas as experiências vividas por Ney de maneira intensa e, ao mesmo tempo, leve. Sobretudo gostosa de acompanhar. O roteiro é todo costurado por canções e shows que marcaram as diversas fases da carreira do cantor. Que eu, graças a Deus, tive o prazer de acompanhar. Me vi nos embates de Ney com o pai, na dificuldade que tinham de se relacionar, no carinho e proteção da mãe, no deslumbramento com que ele, ainda criança, assiste com ela à performance de Elvira Pagã no palco. Na descoberta da sexualidade, da capacidade de se expressar através da arte. Agradeço ao diretor Esmir Filho, sua homenagem a Ney Matogrosso homenageou também esse humilde fã do astro retratado no filme... E os garotos lindos que compõem o elenco? E a praia de Ipanema dos anos setenta e oitenta recriada pela direção de arte impecável de Thales Junqueira, que anima imagens imortalizadas pelas lentes de Alair Gomes? Demais para um senhor da minha idade, haja coração. Saí do cinema morrendo de vontade de voltar para assistir a tudo de novo... Ah, não deixem de prestar atenção em Augusto Trainotti, que faz Cato, o colega de Ney na aeronáutica. Ele já chamou a atenção como o soldado que acompanha a personagem de Fernanda Torres na cadeia em Ainda Estou Aqui. Além de um lindo rostinho que a câmera adora, ele tem muito talento como ator e bailarino... O primeiro show de Ney Matogrosso a que assisti foi Feitiço, no Teatro Leopoldina de Porto Alegre, em 1979. Depois perdi a conta de quantos outros assisti. O show Inclassificáveis assisti aqui em São Paulo e no Canecão, no Rio, na companhia dos saudosos Lidoka e Ezequiel Neves. Um dos que mais amei foi Beijo Bandido, no qual ele se apresentava com um terno branco cujo paletó tinha um forro de cetim vermelho. São muitas memórias ligadas a Ney Matogrosso, desde minha infância, quando ele surgiu com o Secos & Molhados sacudindo padrões e preconceitos, até os dias atuais. Graças ao amigo em comum que tivemos, o saudoso Ocimar Versolato, pude estar com Ney diversas vezes, não apenas em shows, mas tembém em festas do Ocimar e quando ele o levou para assistir à Terça Insana. Tenho uma caixa de CDs dele chamada Camaleão, com 17 álbuns de carreira e algumas raridades. Não paro de ouvir desde que voltei do cinema... O filme termina com a imagem impressionante do Ney Matogrosso atual e real se apresentando para uma plateia de milhares no show do Aliance Park aos 83 anos de idade. Mexe com a noção de passagem do tempo. Saí do cinema pensando que a transitoriedade, a impermanência das coisas e dos seres vivos pode ter diferentes extensões e durabilidades. Me lembrou uma frase do livro A Culpa é das Estrelas, de John Green, que diz: "alguns infinitos são maiores do que outros". É isso aí. Ney é infinito... Se você nunca viu rastro de cobra nem couro de lobisomem corre para o cinema pra assistir a Homem Com H. Nas fotos, o cartaz do filme e Esmir Filho dirigindo Jesuíta Barbosa.

sábado, 26 de abril de 2025

LENA IN HEAVEN

O ano de 1987 começou com uma perspectiva muito excitante para mim: Estrear um espetáculo em São Paulo. Eu tinha vinte e três anos, estava cursando a faculdade de teatro em Porto Alegre e, se já não fosse o bastante, era um dos integrantes do elenco do Grupo Tear, sob a regência de Maria Helena Lopes. Eu, que conhecera São Paulo na infância - quando vim visitar meus tios e primos na companhia de meus avós - agora me encantava com a Sampa cantada por Caetano Veloso. Nas noites efervescentes do Bexiga meu walkman tocava Talking Heads. Heaven era minha canção preferida: Todos estão tentando chegar no bar. O bar se chama paraíso. No paraíso a banda toca minha música favorita… Nosso espetáculo se chamava Império da Cobiça. Tinha sido criado a partir de improvisações inspiradas pelo livro Memórias do Fogo, de Eduardo Galeano. Um processo longo e por vezes doloroso. Mas sempre estimulante e encantador. Errávamos muito. Mas quando acertávamos era um deleite. E a Lena, como a chamávamos carinhosamente, invariavelmente nos conduzia ao deleite. Era o mínimo que ela buscava… De São Paulo fomos para o Rio de Janeiro. Foi quando mais me aproximei dela. Fizemos coisas juntos, passeamos, demos entrevistas, fomos ao cinema. Lembro de ter assistido com ela ao filme Veludo Azul, de David Lynch, num cinema em Botafogo. Lena me contou que fizera uma edição própria do filme: Primeiro assistiu da metade para o fim e, na sessão seguinte, do início ao meio. Só ela… Uma das minhas maiores alegrias era fazê-la rir das minhas imitações das pessoas que conhecíamos ao longo da turnê. Era quando eu sentia que a agradava de verdade. Em cena eu sabia que às vezes deixava a desejar, iniciante que era… A primeira coisa que aprendi com ela foi a escutar. Acho que foi no primeiro dia de aula na faculdade. Nunca esqueci. Levei para a vida. (Imagino o que ela diria hoje nesse mundo em que todos só falam sem ouvir nada)… Outro ensinamento que nunca esqueci: Você tem medo, mas faz. Sempre que tremo na base antes de entrar em cena ou fazer o que for preciso na vida, lembro dessas palavras e não deixo o medo me paralisar. Sigo em frente (todo cagado, mas sigo)… Antunes Filho, outro grande gênio do teatro que já se foi, a reverenciava. Era no teatro dele, no Sesc Consolação, que Lena apresentava suas encenações em São Paulo. Antunes dizia que ela não era diretora, de tão boa que era ele a considerava diretor. E ela, feminista, batia pé na defesa de seu gênero: Sou diretora! Estou na praia, no litoral norte de São Paulo, onde vim passar meu aniversário. Foi no dia dos meus anos que eu soube, por uma rede social, que ela faleceu. Desde então uma sucessão de imagens, cenas, lembranças, me invadiram. Lena risonha e feliz montada na minha Vespa para tirarmos uma fotografia juntos na frente do teatro. Lena brindando seu aniversário numa festa surpresa que fizemos para ela na sala de ensaio. Lena nos mostrando Erté em um livro de arte. Lena no meu apartamento da rua Garibaldi para assistirmos a um filme no meu vídeo cassete. Lena me fazendo repetir incontáveis vezes a frase “quero o sangue e o reino” nos ensaios da peça já estreada; acho que nunca consegui dizer aquilo do jeito que ela queria (me perdoa, por favor, mesmo in heaven)… Memórias, não apenas do fogo, mas da terra, da água e do ar… Obrigado, Maria Helena Lopes, por tudo o que você fez pelo teatro gaúcho e nacional. Obrigado, especialmente, por tudo o que você fez por mim. Por ter me olhado com carinho e atenção; por ter tido paciência com minha juventude e despreparo; por ter assistido às minhas direções (ela que não assistia a quase nada e, quando assistia, quase nunca gostava); por ter me inspirado, me aberto os olhos e, sobretudo, por ter me estendido a mão… Meu walkman não existe mais. Choro enquanto escrevo esse post ouvindo Talking Heads à beira-mar nos fones sem fio do celular… “Há, no paraíso, uma festa e todo mundo está lá. Todos partirão ao mesmo tempo. Quando essa festa acabar, ela começará de novo. Não será diferente. Será exatamente igual. O paraíso é um lugar onde nada nunca acontece”… Tenho certeza que você vai sacudir o paraíso e fazer muita coisa acontecer. Siga na luz! Na foto, Lena e Sergio preparam o brinde na festa suspresa que fizemos para ela na sala de ensaio.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

ÚLTIMO SONHO

Fim de domingo com Almodóvar… Não me refiro a seus filmes, mas à leitura da obra O Último Sonho, uma coletânea de doze contos do cineasta espanhol. Sou fã de Pedro Almodóvar num grau meio difícil de mensurar, algo que beira a mais louca obsessão. Referindo-se a esse livro, ele diz ser o mais próximo que já chegou de uma autobiografia. Não há como não concordar, Almodóvar é quase sempre muito autobiográfico no que quer que faça. Mesmo quando não fala necessariamente de si mesmo: Pode ser da mãe, da Espanha, de uma cantora de boleros, de um livro que leu ou de algum filme a que assistiu. E eu, pela total identificação, quase sempre acabo acreditando que fala de mim. Como no conto Romance Ruim, no qual discorre sobre a vontade que tem de escrever um romance, ainda que não seja o romance ideal. Fala também da necessidade que sente de estar com pessoas e conhece-las, o que também me reflete bastante. Eu tenho essa necessidade e espero nunca vir a perde-la. Assim como a vontade de sair, de ver coisas, viver coisas, descobrir coisas novas e me conhecer melhor através delas. Ou pelo menos, como cantou Rita Lee, saber que “enquanto estou vivo e cheio de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz”… No fim de semana que hoje se encerra estive com amigos queridos, assisti a espetáculos de teatro, comemorei com minha amiga Pilly Calvin, que há anos não encontrava, o seu aniversário. Saí da minha rotina de novo idoso, me sacudi, me testei, descobri limites e restrições. Nada que me impeça de ir em frente. Gosto muito da vida, de estar nela. Dia desses, visitando minha amiga e "ídola" Cida Moreira, que se recupera de uma lesão no braço, enquanto conversávamos cheguei à conclusão de que tenho (temos) uma conexão com a vida. Com o estar vivo. Acordar pela manhã e ser grato por estar ali. Pelo dia que começa. Pela luz do sol de outono que invade a janela. Isso. E muito, muito mais… Meu aniversário se aproxima e eu, taurino que só, me ponho a contar os dias e a comemorar antecipadamente. Que a nova idade que chega me dê mais vontade de estar vivo. Apesar de. Além de. Através de. E sobretudo…. Quando digo que não me refiro aos filmes, mas à leitura do livro, minto. Na semana que passou revi O Quarto ao Lado, que agora está disponível na Netflix. Mesmo sem o impacto da grande tela do cinema o filme mantém sua força. E muito do que escrevo agora também é fruto de te-lo revisto. Como podem perceber, Pedro Almodóvar me influencia sempre e de todas as maneiras… Bon avril à tous! Na foto, a capa de O Último Sonho.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

MACÁRIO

Volto aos posts relativos às minhas direções em teatro. Achei que já tinha escrito aqui sobre todas elas, mas me dei conta de que faltaram algumas… Meu trabalho de conclusão do curso de direção na faculdade de Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul foi uma adaptação do Macário, de Álvares de Azevedo, no segundo semestre de 1989. Eu já tinha feito muito sucesso com meu trabalho anterior, a Lisístrata de Aristófanes, que me rendeu os prêmios Açorianos e Sated de melhor diretor e o troféu Scalp de teatro. Decidi então fazer algo mais cult, low profile, para poucos mesmo. Apenas três apresentações, à meia-noite, no teatrinho do Dad, do qual retirei algumas poltronas para limitar ainda mais o número de espectadores. Para o papel título escalei o então iniciante Fernando Washburger, que despontava como promessa de jovem ator. No papel de Satã, o antagonista, a talentosíssima Lucia Serpa e, se desdobrando em todos os personagens femininos, a não menos talentosa Ciça Reckziegel. Explorando todo o espaço cênico e a plateia, minha encenação tinha marcações nada realistas. O que conferiu um certo ar expressionista/pós-moderno ao espetáculo. (Eu estava numa fase Gerald Thomas/Bob Wilson, buscando o teatro de imagens, mais experimental e menos popular, digamos assim). Muito dessa atmosfera devo creditar à incrível iluminação concebida pelo saudoso Hermes Mancilha. Com pouquíssimos refletores e uma criatividade sem limites, ele transformou em sonho tudo o que tocou. E em realidade tudo o que sonhei... A peça teve a participação de Guto Vilaverde, nu, em uma inusitada Pietá nos braços de Ciça Reckziegel. Marlene Goidanich se encarregou da preparação vocal e da belíssima sonoplastia. Meu professor orientador foi o querido Beto Ruas, de quem guardo lembranças de muita identificação e afeto. Minhas colegas Nora, Ilana e Lucia me ajudaram na produção e Nora se encarregou dos figurinos. Infelizmente não tenho nenhum registro do espetáculo. Quem viu, viu. Antonio Holfeldt fez uma inspirada crítica no jornal Correio do Povo, falando de Macário e da importância do DAD/UFRGS. Claudio Hemmann assistiu, assim como várias celebridades locais. A diretora Bia Lessa, que estava em cartaz na cidade, foi assistir e, depois da peça, disse que tinha achado o diretor “um gatinho”, o que me deixou lisonjeado rsrsrs… Gosto muito deste meu trabalho, como diretor é um dos meus preferidos. Uma pena que não tenha sido gravado nem fotografado. Mas, como tudo na vida é transitório, a própria vida inclusive, registro aqui como tentativa de preservar a memória dos meus espetáculos. Nas fotos, o programa do espetáculo; feito artesanalmente como quase tudo o que fazíamos à época; nosso teatro, inclusive.

segunda-feira, 31 de março de 2025

TEATRO DOS BONS

Ontem fui assistir pela segunda vez a O Antipássaro, espetáculo solo do ator Nilton Bicudo, com textos da poeta Orides Fontela e direção de Elias Andreato. Nesta nova temporada no Teatro Ágora há uma pianista executando ao vivo a belíssima trilha sonora. O que já era bom ficou ainda melhor. Niltinho exala talento pelos poros. Sua entrega ao texto e ao teatro em si é extremamente tocante. Nunca fui muito fã de poesia, ainda mais no teatro. Mas ele se apropria com tamanha força das palavras de Orides que elas nem soam como poemas, mas como grandes verdades que tocam a plateia e calam fundo nos que se permitem aprecia-las. Além de dizer os poemas, Nilton também dá voz à própria Orides com falas extraídas de entrevistas que ela deu para a televisão em programas como o de Jô Soares, por exemplo. É quando o ator acrescenta delicadas doses de humor ao lirismo do espetáculo. Nisso, diga-se, ele é mestre. Vide a sua inesquecível performance em Myrna Sou Eu, outro solo em que dava vida ao pseudônimo feminino de Nelson Rodrigues. Esse Antipássaro é uma pequena joia ornada das mais belas filigranas. A noite de domingo e o mês de março foram encerrados de maneira brilhante... Na quinta-feira fui assistir a Não Me Entrego, Não, espetáculo do ator Othon Bastos, que impressiona pela vitalidade e lucidez aos noventa e um anos de idade. Desde que entra em cena e é imediatamente aplaudido até o final de quase duas horas de peça, ele dá um show de carisma e talento puro. Com roteiro e direção de Flávio Marinho, o espetáculo revisita a longa e profícua carreira deste grande ator dos palcos, da televisão e do cinema. Uma aula de cultura brasileira. E a agradável sensação de que a passagem do tempo a tudo melhora... Tão bom quanto fazer teatro é assistir a teatro dos bons, como esses dois inesquecíveis espetáculos que tive o prazer de ter ido essa semana. Longa vida a O Antipássaro e a Não Me Entrego, Não! Nas fotos, Niltinho e Othon bastos recebem os merecidíssimos aplausos.

domingo, 16 de março de 2025

ELIS 80

Hoje é domingo e eu estou bebendo vinho branco e ouvindo Elis. Até aí, nada de novo. Quem me conhece sabe que beber vinho branco e ouvir Elis são duas das coisas que mais faço na vida. O que há de especial é que, se ainda estivesse viva, Elis completaria oitenta anos amanhã. Como eu normalmente não bebo às segundas-feiras, adiantei a comemoração para hoje… O engraçado é que tudo hoje é diferente. Ouvir Elis, comemorar seu aniversário e, até mesmo, beber vinho branco. Costumava comemorar essa efeméride com minha amiga Anne, no apartamento dela, na época em que éramos vizinhos na rua Garibaldi, em Porto Alegre, na década de oitenta do século passado. Hoje estou comemorando sozinho no meu apartamento da Alameda Franca, em São Paulo, onde já moro há 29 anos; e onde, diga-se de passagem, seria vizinho de Elis, que morava há poucas quadras daqui, na rua Doutor Mello Alves... Hoje ouço Elis com muito mais prazer. O prazer de fruir das sutilezas e nuances da sua interpretação, dos arranjos, das letras das canções. Aliás, isso seria um post à parte, a qualidade e beleza das letras das canções que se perderam com o tempo por aqui. Ela teria um trabalho pesado para garimpar algo que prestasse para gravar hoje em dia. Pérolas como os versos de João Bosco e Aldir Blanc na canção Cabaret: “No drama sufocado em cada rosto, a lama de não ser o que se quis” ela não encontraria por mais fundo que mergulhasse… Beber vinho branco também é uma outra experiência hoje em dia. A começar pela qualidade do vinho que bebíamos na época e a do que bebo hoje em dia. Junte-se a isso os anos vividos, as experiências adquiridas, as viagens, as memórias, misture bem, deixe descansar e aprecie com moderação (Não muita)… Depois de ter ouvido vários de seus álbuns, ter se emocionado, se divertido e ter tido mais uma vez renovada a certeza de que Elis era a maior cantora do Brasil, feche os olhos e grite bem alto (nem que seja para dentro ou contra uma almofada): Viva Elis Reginaaaaa!!!! Nas fotos, Elis fotografada por mim no show Saudade do Brasil, no Canecão, e pela lente da genial fotógrafa Vânia Toledo que, infelizmente, também já nos deixou, para a capa do novo disco que não chegou a lançar.

segunda-feira, 10 de março de 2025

ADELAIDE BACALHAU

Domingo pela manhã, enquanto preparava o almoço, me deparei com uma postagem no Instagram que trazia uma sugestão para você criar o seu nome de drag. Bastaria juntar o nome da sua avó com a última coisa que você comeu. Minha avó materna, a única que conheci, se chamava Adelaide. Eu estava preparando um bacalhau e, como tinha provado diversos bocados dele enquanto cozinhava, não deu outra: Meu nome drag virou Adelaide Bacalhau. Gostei tanto que fiquei rindo sozinho diante do fogão. Achei meio parecido com nome de chacrete (millennials, dêem um Google) ou de vedete do teatro rebolado (idem, idem)… Depois fiquei pensando em como seria a minha drag queen, como se definiria a sua personalidade. Acho que ela não seria muito dada nem muito simpática. Seria bem exigente, um pouco chata, mesmo. Metida. Blasé. Não toleraria erros de português. Escritos ou falados. Não teria muita paciência para as trends e memes da internet. Já estaria de saco cheio de todos esses jargões relacionados a Fernanda Torres: nós vamos sorrir, sorriam, totalmente não sei o quê, a vida presta (esse, aliás, até a própria já não deve aguentar mais)… Em peças de teatro e em filmes que considerasse chatos, Adelaide Bacalhau certamente se levantaria e sairia na metade. Ou antes, até... Se ela fosse visitar essa exposição em homenagem a Ney Matogrosso que o MIS está exibindo, sairia desencantada com a pobreza e a feiúra. Imagina, um artista do quilate de Ney receber essa homenagem chinfrim! Parece que a gente está no backstage de um estúdio de televisão, tudo colado em tapadeiras, um monte de panos transparentes atrapalhando a visão! Mas, deixa quieto... Dedé Baca (vamos ser íntimos) também não aceitaria esse remake da novela Vale Tudo que a Globo está a requentar. Principalmente Humberto Carrão, com aquela cara de militante, fazendo o papel do milionário Afonso Roitman… Adelaide Bacalhau seria também muito rica. Econômica e culturalmente. Dedicaria boa parte do seu tempo à leitura de clássicos da literatura brasileira e universal. O que lhe renderia vasto vocabulário, que ela usaria só para humilhar as incultas e iletradas. Cinéfila que só, assistiria a muitos, muitos filmes e também a séries de streaming. Vestiria Courrèges da cabeça aos pés. De vez em quando Paco Rabane ou Pucci. Ah! Só frequentaria eventos sociais como convidada, jamais se submeteria a fazer recepção ou animação de festas! Coisa mais cafona... Pensando bem, Adelaide Bacalhau, minha persona drag, seria muito parecida comigo. Na verdade, eu mesmo. Só que com peruca, cílios postiços, salto alto e língua afiada… Nas fotos, a eterna chacrete Rita Cadillac e o modelito Courrèges vintage preferido de Adelaide.